Todos os anos passava pelo menos duas vezes por Paris na direção da Alemanha. Estive também na Itália em locais como o Lago di Garda, Florença, Roma, Veneza, Suiça em San Mouritz, Áustria, Londres, sempre na companhia de pessoas que conhecia na Alemanha através da música. Conheci inclusive o Brasil, como Guia Turístico partindo da Alemanha, sem falar alemão e sem conhecer muito bem o meu próprio país para dá-lo a conhecer aos estrangeiros.
Das muitas passagens por Paris houve uma que ficou gravada na minha memória pelo acaso das coisas. Vinha de Londres e estava muito cansado por muitas noites sem descanso. Tinha que esperar pela ligação de trem e comecei a andar pela cidade a procura de um banco para sentar. Sonhava com uma poltrona confortável onde pudesse quiçá, fechar os olhos e descansar um pouco.
Andava errante quando de repente vi-me diante de um edifício majestoso com pessoas a entrar e a sair. Era um museu. Comprei o bilhete sem sequer ver o nome do local e entrei imaginando que um local daqueles teria um lugar para me sentar. Nas primeiras salas estavam expostos quadros tipo murais do pintor Rubens, de quem gosto muito. Magníficos e majestosos preenchiam paredes inteiras. Continuei a andar quando dou com uma sala retangular com um banco simples e sem encosto bem no meio da mesma. Estava de tal maneira cansado que qualquer coisa servia. Dirigi-me rápido para lá com receio que alguém chegasse primeiro. Sentei-me, abaixei a cabeça e fechei os olhos como se fosse me libertar de todo o cansaço do mundo. Ao abrir os olhos novamente mesmo em frente estava uma senhora conhecida, com aquele sorriso enigmático olhando para mim. Não queria acreditar. Estava no museu mais famoso do mundo, frente a frente com a Monalisa, numa época em que podíamos tocá-la com as mãos se quiséssemos e nem sequer tinha dado por isso. Naquela época ainda não havia as pirâmides. Todo o meu cansaço havia desaparecido. Foi um encontro inesquecível e por incrível que pareça a sala continuava vazia. Somente eu embevecido e enfeitiçado a olhar para ela. Apenas de lá sai quando as portas do museu começaram a se fechar tal era a minha satisfação.
Em Portugal era essencialmente estudante. As outras atividades eram bem vindas, desde que não atrapalhassem os estudos. Nunca atrapalharam. Obviamente que essa é uma época que temos tempo para tudo.
Tínhamos um grupo de samba cujo nome era “Verdes e Amarelos”. A gente brincava dizendo que era verde de esperança e amarelo de fome. Éramos 4 elementos e eu participava com os instrumentos pequenos: Tamborim, Pandeiro, Agogô, Reco-reco, Apito, Cavaquinho e voz. O conjunto oficialmente somente funcionava nas festas da passagem do ano e Carnaval. Fomos obrigados pelo sindicato dos músicos a fazer exame para podermos atuar em locais públicos e com contrato. Como não havia ninguém no sindicato que tocasse o que nós tocávamos, passamos todos no exame e fomos autorizados. Rimos muito com essa história.
Nosso primeiro contrato foi no Revellion de 1974 com o Casino da Póvoa de Varzim, uma cidade próxima do Porto. Abrangia uma mesa para as mulheres ou namoradas, bebida e 20.000 escudos que naquele tempo era muito dinheiro. Eu cheguei a viver com 500 Escudos por mês. Nos anos seguintes aumentou mais uma exigência ou seja um quarto para o meu filho mais velho.
Era a primeira vez que faziam um baile tipo Carnaval brasileiro no Casino. As badaladas da meia-noite foram feitas no Agogô. Ficou muito bem. Começamos com o típico Carnaval da nossa juventude ou seja com a Cidade Maravilhosa.
Foi bom demais e inesquecível. Era um salão de festas enorme no primeiro andar. Estavam lá duas mil pessoas. A alegria era tanta que o gerente veio pedir se podíamos tocar uma música mais calma pois estavam com medo do salão vir abaixo.
No andar térreo havia um enorme lustre de cristal que tilintava com o balançar do chão. Após começarmos a tocar ninguém queria mais outro tipo de música. Os outros grupos musicais e de variedades tiveram que ser cancelados pois sempre que tentavam entrar, recebiam uma monumental vaia e saíam.
Voltávamos nós e assim foi até para além das seis horas da manhã.
Nas outras vezes em que lá tocamos, punham uma proteção no centro do salão de forma a prevenir possíveis acontecimentos desagradáveis.
Sempre fui muito ligado ao Carnaval. Fiz músicas para vários deles. Umas de reflexão, outras de saudades, de contestação, etc.
A Revolução dos Cravos foi inesquecível. Aconteceu a 25 de Abril de 1974.
Era um dia como qualquer outro para nós. Às 8hs da manhã chegamos ao Café Avis no centro da cidade do Porto para estudar. Os Cafés eram o lugar onde se estudava em Portugal naquela época. Normalmente pedíamos um cafezinho e passávamos horas a estudar. Após começar o estudo, notamos que as pessoas nas outras mesas falavam baixo e de uma forma diferente do habitual. Pareciam cochichar. Era como se tivessem receio de ser ouvidas. Vivíamos uma época de medo. Já estávamos habituados ao modo das pessoas se comportarem no dia-a-dia, mas naquele dia ainda assim era diferente. Ficamos curiosos e perguntamos a alguém do lado o que tinha acontecido.
Disseram que se falava num “Golpe de Estado militar”.
Passaram alguns minutos e começamos a ouvir um grande alarido vindo dos lados da Avenida dos Aliados, uma praça central da cidade, muito próxima do Café onde estávamos. O povo estava nas ruas e era cada vez mais gente. A polícia apareceu mas já nada podia fazer. A pequena maré de gente inicial virou mar.
A liberdade tinha chegado.
De um lado estava a polícia, do outro, o exército e no meio o povo. Era engraçado ver o povo avançar contra os polícias, que eram vistos como defensores do regime, tendo nas suas costas o exército, que sentiam como seu protetor. O povo avançava, a polícia recuava e vice-versa.
Ficaram nesse vaivém algum tempo, até que a polícia não resistiu mais e saiu dali numa autêntica debandada. Vi polícias sendo agredidos e perdendo o chapéu na fuga em cenas humilhantes e também caricatas. Um amigo nosso, quase foi apanhado no meio da refrega com tiros a passar muito perto. O povo soltou então o fogo reprimido durante tantos anos. Os meses seguintes foram dos mais belos que já vivi. O regime anterior tinha feito Portugal voltar à Idade Média.
Éramos jovens e cheios de ideais. Fomos também fazer o que era chamado na época de dinamização cultural à semelhança da Revolução Chinesa. Soubemos depois, que no caso da China houve excessos e até mesmo crimes. Fomos para o interior do país em locais perdidos do mundo. À noite por não haver eletricidade, fazíamos uma fogueira no meio da praça e conversávamos com as pessoas sobre seus problemas, seus sonhos etc…, mas essencialmente na nossa área que era da saúde. Como gratidão, num desses lugares levaram-nos a ver o canto dos rouxinóis às 5hs da manhã. Com essa troca de conhecimentos e experiências aprendemos muito e serviu para a nossa vida futura.
É curioso o paradoxo das coisas. Tínhamos saído de um país onde os militares sequestraram a liberdade ao povo. Estávamos agora noutro onde os militares tinham devolvido essa mesma liberdade ao povo.
O povo era outro, mas a necessidade de liberdade é igual em todo lado e nunca me esquecerei desses momentos.
A liberdade é o bem mais precioso que temos. Mesmo que toda a nossa vida seja uma autêntica prisão em liberdade, a sensação de ser livres transcende qualquer coisa.
Pensar que podemos sair e recomeçar é um sentimento que nos faz continuar, muitas vezes para além do imponderável e mesmo que uma análise lógica, nos diga que nunca poderemos fazer ou conseguir tal coisa.
Como diz o poeta, “o sonho comanda a vida…”
Uma imagem que me ficará na memória para sempre é a do menino pondo um cravo no cano do fuzil do soldado. Hoje faz parte da minha janela de sonhos.
Durante o curso fizemos apresentações musicais em várias faculdades para além da nossa.
Talvez um dos melhores momentos e também dos mais confusos que ficou na memória foi na Faculdade de Belas Artes.
Uma amiga nossa, a “Baixinha”, do Ceará, ia lá fazer a apresentação de um livro que acabara de escrever e nos convidou para fazer a parte musical. Haveria também alguns quadros pelo pessoal das Belas Artes e na segunda parte viria outro pessoal de Coimbra para apresentar poemas de Álvaro de Campos, um dos heterónimos de Fernando Pessoa. Cada parte devia durar mais ou menos uma hora. Eu aceitei o convite mas avisei que não iria aos ensaios. Tocaria qualquer coisa de acordo com o que fosse acontecendo. É a vantagem de sabermos muitas músicas. Alguma delas encaixaria no momento. A conclusão a que cheguei no final, foi que toda gente procedeu como eu, isto é, ninguém sabia exatamente o que o outro ia fazer.
Quando abriram as portas e o público começou a entrar uma das participantes no espetáculo entrou em crise histérica. Começou por balançar o púlpito que havia no palco provocando um ruído desagradável. Dado a época em que vivíamos as pessoas pensaram que já fazia parte da encenação e assim continuou.
No primeiro quadro era ela a protagonista. Devia matar uma galinha em plena cena e atirar o sangue numa tela branca. Era para chocar o público, mas até hoje não entendi qual era a ideia. Como nunca tinha morto nada, não conseguiu e a galinha fugiu para o meio do público. Começou um corre-corre atrás da galinha e foi hilariante ver tanta gente correndo atrás de uma galinha num anfiteatro de uma faculdade. O público para além do muito movimento continuava a pensar que aquilo também fazia parte do espetáculo.
O segundo quadro era com uma moto com 500cc que sairia da rua em frente à faculdade, entraria pela porta principal e daí sempre acelerando seguiria direto para o anfiteatro onde estávamos e somente parando no meio do palco. Só que se esqueceram de avisar o porteiro que veio correndo atrás gritando e discutindo com o motociclista/ator. Confusão geral e todo mundo pensando que fazia parte do espetáculo. Não me perguntem o que queria dizer…
Outro quadro hilariante foi o protagonizado por outro personagem que à meia-luz entrava nu no palco fazendo expressão corporal. Ele tinha combinado com alguém para mais ou menos no meio da sua atuação levar-lhe um esqueleto que acredito tenha sido tirado da Faculdade de Medicina.
Esse alguém esqueceu-se e ele desesperado no palco, sem roupa, já não sabendo o que fazer, sussurrava pelo canto da boca para que alguém dos bastidores lhe levasse o dito esqueleto e nada. Até que alguém foi lá buscar.
Só que a pessoa combinada lembrou-se e foi também. Houve um mal-entendido entre eles pois um pensava que o outro estava roubando o esqueleto e este no puxa-puxa desfez-se em pedaços no chão escuro dos bastidores. Era impossível encontrar todas as partes e levaram apenas um fémur. O artista no palco teve que se contentar em simbolizar a vida, peladão, e a morte com um osso da perna. Para quem assistia tudo como eu por detrás dos panos foi de morrer de rir. O público continuava a pensar que o espetáculo era assim mesmo.
Na apresentação do livro, a “Baixinha”, ia ler algumas passagens enquanto eu dedilhava alguns acordes no violão. Uma luz nos iluminava por detrás e projetava nossa imagem numa tela em frente num belo jogo de luzes e sombras. Na parte da frente da tela apareceu de novo a participante da galinha, cada vez mais doida. O público entendia como provocação, queria ouvir, mas ela não deixava e começou a vaiar cada vez mais alto. Nós como não víamos o que se estava a passar devido a tela a nossa frente pensando que a vaia era para nós, começamos a agredir verbalmente o público e a situação foi ficando cada vez mais fora de controle.
Por sorte chegou a turma de Coimbra e tudo se acalmou. O trem tinha atrasado e o que era para ser feito em apenas uma hora durou mais de duas. Tudo de improviso.
No dia seguinte os críticos estavam calmos. Não sabiam o que dizer por não terem entendido o que acontecera na noite anterior. Estavam expectantes.
Podia ser uma nova corrente teatral e ficaria mal ser do contra, mas do espetáculo se falou durante muito tempo. Quiseram repetir mas não aceitei.
Depois de formado fui trabalhar em São Marcos da Serra, uma localidade no sul de Portugal. Era um local de difícil fixação de médicos devido ao fato de ser distante e também por lá trabalhar uma funcionária administrativa que complicava a vida de todos, tanto médicos como pacientes.
Dadas as circunstâncias do momento e a par da situação local, aceitei com a condição de ser eu o encarregado geral do Posto. Essa condição foi logo aceita pois na época não havia médicos disponíveis.
O mês transcorreu sem que nada de anormal acontecesse. No seu término quando pedi todo o material burocrático que devia enviar para a Sede do Centro de Saúde. a funcionária mostrou as garras dizendo que não tinha de me entregar nada, que quem mandava lá era ela. Não foi preciso mais nada. Expulsei-a do local, que estava cheio de pacientes. Foi um grande escândalo. No dia seguinte lá estavam os chefes todos da região, comunicando que já não precisavam dos meus serviços. Era uma maneira simpática de dizer que tinha sido despedido.
Toda a população tinha se concentrado em frente ao Posto de Saúde e não aceitava aquela situação. Estavam indignados com o procedimento dos chefes em defender a funcionária de quem não gostavam.
Estávamos então no mês de Agosto e resolvemos ir para o Porto descansar. Um mês depois quando voltamos, toda a gente estava de novo a nossa procura para voltarmos a trabalhar np Posto de Saúde.
O povo revoltara-se, expulso a funcionária e queria que eu voltasse. Um dia impediram que a dita funcionária entrasse no Posto e desde então nunca mais voltou. Chegaram a montar piquetes à porta para não deixá-la entrar. Uns levavam refeições para os outros. Eu era apenas um funcionário contratado ao contrário dela que era efetiva na função pública. Além disso era de outras terras, outro país e mesmo assim o povo ficou do meu lado. No fundo eu apenas tinha feito o que todos ardentemente desejavam fazer. Foi instaurado um processo por ofensas corporais e aí então a atitude do povo foi ainda mais bonita. Contrataram um advogado para me defender e não permitiram que eu pagasse nada.
No dia do julgamento alugaram vários ônibus e foram assistir, demonstrando deste modo o apoio que me davam.
No interrogatório ninguém tinha visto nada de ofensivo na minha atitude. Nem as próprias testemunhas da funcionária. Dado nada ter-se provado, o Juiz deu o caso por encerrado.
Fiquei depois disso mais alguns meses trabalhando lá. Foi aberto concurso e fui colocado como efetivo em uma cidade distante dali, onde me mantive por dois anos.
O povo de São Marcos da Serra continuou, no entanto, lutando para que eu voltasse para lá. Fez vários abaixo-assinados até ao Primeiro-Ministro pedindo para lá ser colocado.
Um dia estava em casa descansando quando recebo um telefonema dizendo que um assessor do Ministro da Saúde precisava falar comigo. No princípio não acreditei. Pensei que era trote de algum amigo, mas afinal era verdade. Queria saber se eu aceitava voltar para São Marcos da Serra.
Aceitei como é lógico, pois não podia negar nada que fosse àquele povo que tanto tinha lutado por mim. O que mais admira é essas coisas acontecerem em outras terras, outras gentes. Como vêm, Minha Terra, Minha Gente, pode ser qualquer lugar, qualquer pessoa, quando há respeito e dedicação.
Em relação à música, tenho quase duas centenas delas. Faço por passatempo para relaxar do dia-a-dia. Tanto a solo como em parceria. Dá-me grande prazer a parceria musical. É gostosa a cumplicidade que passa haver entre os parceiros. É como uma vida em comunhão.
Adalton Batista é médico e músico, vive e trabalha na Europa. Aqui ele compartilha parte da sua história conosco.
Valéria Pisauro
21 de agosto de 2013
Bravo, Adalton!
Parabéns.
Carla Betta
24 de agosto de 2013
Que vida mais agitada!
Anônimo
2 de setembro de 2013
Pois é minha gente, foram muitas histórias. Falei apenas de algumas que me pareceram mais relevantes e que poderiam evidenciar que se quisermos e nos esforçar-mos, fazemos. Obrigado pelos comentários.
alemdooceano
4 de outubro de 2013
amigo .. sua história me faz pensar que a música encanta, quando a musica canta nossas dores, nossas agruras…como dissemos n nossa ” Faz de conta”…