Uma carta de gratidão em memória de Argemiro Ramos. Por Luis Fernando Amstalden

Posted on 16 de outubro de 2013 por

17



frase-mestre-nao-e-quem-sempre-ensina-mas-quem-de-repente-aprende-guimaraes-rosa-104491

Era sempre às sextas feiras, nos últimos minutos da última aula. Havíamos “combinado” isto.  Na verdade, ele nos fez acreditar que combináramos. Se nos portássemos, ele leria um trecho de um livro para nós, naqueles últimos minutos da semana de aulas. Estávamos na quinta série, hoje, sexto ano do ensino fundamental, e aguardávamos com ansiedade aqueles minutos. Às vezes, ele parecia se esquecer e precisava ser “lembrado”. Fazia então um ar de surpresa e, sempre sorridente, sacava um livro da pasta. E então acontecia. O professor corpulento, modulando a voz de acordo com o que lia, se transformava em um conto, uma estória, um trecho de um romance. Transformava-se em emoções e idéias. Nós, hipnotizados, às vezes ríamos muito de contos de Carlos Drummond, Fernando Sabino, Rubem Braga e outros, ou chorávamos com textos mais sensíveis. Quando ele leu para nós, o trecho da morte da cachorra Baleia, de Vidas Secas, Graciliano Ramos, choramos até soluçar. Não fui só eu não. Fomos todos. E as imagens dos delírios da cachorra nunca mais me saíram da mente.

Não sei bem como começou, mas mais tarde passei a freqüentar sua casa, importunando aos sábados. Lá buscava tudo o que uma criança/adolescente, um tanto deslocado, precisava: atenção, diálogo e conhecimento. Não, não me lembro de como comecei, com que “cara de pau” fui as primeiras vezes, mas me lembro das conversas, dos livros  que me emprestou e do que me ensinou, fora de horário, me acolhendo. Eram tardes mágicas, nas quais eu falava e ouvia. Aprendia sobre mitologia, política, literatura, história, valores, ética, respeito. Ele sabia tudo isto. Sua esposa, Jandira Silveira Ramos, também minha professora, tanto quanto ele era paciente com minhas visitas. Foram meus professores por somente dois anos. Mas freqüentei sua casa por muitos outros.

Muito depois, professor jovem e inexperiente, deparei-me, no primeiro dia de aulas, com você, Caio Silveira Ramos, que eu conheci criança e, sim Caio, sou abençoado com uma memória tão viva, que me lembro da cena de seu pai, Argemiro Ramos, me apresentando a você, garoto pequeno e me dizendo que seu nome era Caio: “como o de Caio Júlio César…” Você não mudara muito em fisionomia, e agora estava à minha frente, meu aluno. Senti um calafrio. Como eu poderia ser professor do filho de um dos meus grandes professores? Até hoje recordo de meu temor. Ao fim da aula, cheguei perto de você, Caio, e disse que seu pai havia sido um dos grandes em minha vida. Porém, eu nunca fui e não sou, nem uma parte do professor que seu pai foi. Não tenho o conhecimento e a capacidade de ensinar que ele tinha e, com certeza, tampouco a generosidade dele. Mas, me esforcei e me esforço, até hoje, para ser digno do que ele me ensinou, na sala de aula e na sua casa.

Quando Argemiro Ramos morreu, eu cursava o doutorado e trabalhava em uma pesquisa na UNICAMP. Estava sem telefone em casa. A notícia da morte chegou no dia seguinte, através de um bilhete da secretária em minha escrivaninha. Minha mãe ligara avisando, mas eu havia saído para a biblioteca e de lá para casa. Não puderam falar comigo a tempo e, quando li o bilhete, o funeral já havia acontecido. E eu, que não chorava desde a adolescência, chorei como uma criança. Chorei como no dia em que ele leu para nós a morte da cachorra Baleia, mas agora, desconsolado, chorava a morte real. Chorei a falta de meu professor, meu referencial, meu amigo.

Caio, sei que tomei algumas tardes preciosas da sua convivência com seu pai, como você escreveu recentemente, mas o que posso lhe dizer, em parte como uma reparação, é que se o dia dos professores tem algum sentido, é devido a pessoas como Argemiro Ramos. Ele ainda vive em mim, em cada aula que dou, em cada trecho de livro que leio para meus alunos, em cada busca minha para ser um ser um homem  melhor. E se eu tive alguma pequena influência em meus alunos, como Argemiro teve na minha, então ele continuará vivo quando eu me for, através das atitudes e conhecimentos daqueles a quem tentei ensinar. Esta é a eternidade de um grande homem.

Posted in: Artigos