Era sempre às sextas feiras, nos últimos minutos da última aula. Havíamos “combinado” isto. Na verdade, ele nos fez acreditar que combináramos. Se nos portássemos, ele leria um trecho de um livro para nós, naqueles últimos minutos da semana de aulas. Estávamos na quinta série, hoje, sexto ano do ensino fundamental, e aguardávamos com ansiedade aqueles minutos. Às vezes, ele parecia se esquecer e precisava ser “lembrado”. Fazia então um ar de surpresa e, sempre sorridente, sacava um livro da pasta. E então acontecia. O professor corpulento, modulando a voz de acordo com o que lia, se transformava em um conto, uma estória, um trecho de um romance. Transformava-se em emoções e idéias. Nós, hipnotizados, às vezes ríamos muito de contos de Carlos Drummond, Fernando Sabino, Rubem Braga e outros, ou chorávamos com textos mais sensíveis. Quando ele leu para nós, o trecho da morte da cachorra Baleia, de Vidas Secas, Graciliano Ramos, choramos até soluçar. Não fui só eu não. Fomos todos. E as imagens dos delírios da cachorra nunca mais me saíram da mente.
Não sei bem como começou, mas mais tarde passei a freqüentar sua casa, importunando aos sábados. Lá buscava tudo o que uma criança/adolescente, um tanto deslocado, precisava: atenção, diálogo e conhecimento. Não, não me lembro de como comecei, com que “cara de pau” fui as primeiras vezes, mas me lembro das conversas, dos livros que me emprestou e do que me ensinou, fora de horário, me acolhendo. Eram tardes mágicas, nas quais eu falava e ouvia. Aprendia sobre mitologia, política, literatura, história, valores, ética, respeito. Ele sabia tudo isto. Sua esposa, Jandira Silveira Ramos, também minha professora, tanto quanto ele era paciente com minhas visitas. Foram meus professores por somente dois anos. Mas freqüentei sua casa por muitos outros.
Muito depois, professor jovem e inexperiente, deparei-me, no primeiro dia de aulas, com você, Caio Silveira Ramos, que eu conheci criança e, sim Caio, sou abençoado com uma memória tão viva, que me lembro da cena de seu pai, Argemiro Ramos, me apresentando a você, garoto pequeno e me dizendo que seu nome era Caio: “como o de Caio Júlio César…” Você não mudara muito em fisionomia, e agora estava à minha frente, meu aluno. Senti um calafrio. Como eu poderia ser professor do filho de um dos meus grandes professores? Até hoje recordo de meu temor. Ao fim da aula, cheguei perto de você, Caio, e disse que seu pai havia sido um dos grandes em minha vida. Porém, eu nunca fui e não sou, nem uma parte do professor que seu pai foi. Não tenho o conhecimento e a capacidade de ensinar que ele tinha e, com certeza, tampouco a generosidade dele. Mas, me esforcei e me esforço, até hoje, para ser digno do que ele me ensinou, na sala de aula e na sua casa.
Quando Argemiro Ramos morreu, eu cursava o doutorado e trabalhava em uma pesquisa na UNICAMP. Estava sem telefone em casa. A notícia da morte chegou no dia seguinte, através de um bilhete da secretária em minha escrivaninha. Minha mãe ligara avisando, mas eu havia saído para a biblioteca e de lá para casa. Não puderam falar comigo a tempo e, quando li o bilhete, o funeral já havia acontecido. E eu, que não chorava desde a adolescência, chorei como uma criança. Chorei como no dia em que ele leu para nós a morte da cachorra Baleia, mas agora, desconsolado, chorava a morte real. Chorei a falta de meu professor, meu referencial, meu amigo.
Caio, sei que tomei algumas tardes preciosas da sua convivência com seu pai, como você escreveu recentemente, mas o que posso lhe dizer, em parte como uma reparação, é que se o dia dos professores tem algum sentido, é devido a pessoas como Argemiro Ramos. Ele ainda vive em mim, em cada aula que dou, em cada trecho de livro que leio para meus alunos, em cada busca minha para ser um ser um homem melhor. E se eu tive alguma pequena influência em meus alunos, como Argemiro teve na minha, então ele continuará vivo quando eu me for, através das atitudes e conhecimentos daqueles a quem tentei ensinar. Esta é a eternidade de um grande homem.
Luciana
16 de outubro de 2013
Também foi meu mestre, Luis! O profº Argemiro deixa saudades por sua competência,pela gentileza e voz mansa, não me lembro de tê-lo visto exaltado em sala de aula.Era um homem que tinha o dom de ensinar e nos fazer apreciar demais suas aulas. Grande mestre!
blogdoamstalden
16 de outubro de 2013
É verdade, Luciana. Jamais o vi levantar a voz. Ele nos mantinha na linha com sua sabedoria. Saudades.
Anônimo
16 de outubro de 2013
Parabéns!!!
O Mestre de outrora moldou com seu magistral encanto, o menino que viria a ser o Mestre de hoje e do amanhã. Quanta felicidade tomar deste cálice oferecido com tanto afeto e gratidão. Obrigada por compartilhar algo tão grandioso e sem reservas. De tal modo a me fazer regar o relevo cutâneo e a molhar minha alma, resgatando lembranças de uma vida inteira… Mesclando às minhas, verdades tão suas, mas tão lindas e tão comoventes.
Fico aqui pensando… Por mais árido que esteja nosso solo educacional, ainda assim, as sementes germinam e vão dando frescor ao nosso universo, cobrindo nosso chão com a esperança de que fazer e extrair de nós, o nosso melhor, faz toda diferença !!!
Lucia
16 de outubro de 2013
Parabéns!!!
O Mestre de outrora moldou com seu magistral encanto, o menino que viria a ser o Mestre de hoje e do amanhã. Quanta felicidade tomar deste cálice oferecido com tanto afeto e gratidão. Obrigada por compartilhar algo tão grandioso e sem reservas. De tal modo a me fazer regar o relevo cutâneo e a molhar minha alma, resgatando lembranças de uma vida inteira… Mesclando às minhas, verdades tão suas, mas tão lindas e tão comoventes.
Fico aqui pensando… Por mais árido que esteja nosso solo educacional, ainda assim, as sementes germinam e vão dando frescor ao nosso universo, cobrindo nosso chão com a esperança de que fazer e extrair de nós, o nosso melhor, faz toda diferença !!!
andregorga
16 de outubro de 2013
Me emocionei, mesmo sem o privilégio de ter conhecido o professor Argemiro. Parabéns pelo texto e pela gratidão que ainda demonstra pelo referido professor. Abraço.
Anônimo
16 de outubro de 2013
Também fui aluna do Professor Argemiro e Professora Jandira e os vejo com o mesmo carinho e respeito que você Fernando, como muitos outros alunos admiradores que eles deixaram por onde passaram. Você disse tudo e somente podemos agradecê-lo por palavras que gostaríamos que tivesse saído de nosso coração. Obrigada primo!
Anônimo
16 de outubro de 2013
Hoje, sou eu quem chora ao ler esse lindo texto…
Paulo Bastos
16 de outubro de 2013
Fernando, conheci “Seo” Argemiro quando ele foi professor de meus irmãos, no “Jorge Coury”, uma vez cheguei a interpretá-lo, numa gincana, Também cheguei a frequentar sua casa por algum tempo, emprestar alguns livros de sua biblioteca que ficava na parte da frente da casa, Dona Jandira ajudava, dava algumas dicas sobre os livros… Depois disso, ele foi meu professor, no “Sud”. Nâo preciso dizer: um dos melhores que já tive, pra não ser injusto com alguns outros. Lendo seu artigo, pude vê-lo, falando, ensinando. Bela homenagem, a sua!
Anônimo
22 de outubro de 2013
Foi com muita emoção que me deparei com as suas palavras, Luis Fernando. Chorei emocionada ao ler essa sua “cartinha”. Também fui aluna do Prof. Argemiro e da D. Jandira, também fui sua colega e amiga e, assim como o Paulinho escreveu, convivemos muito com esta família maravilhosa. As vezes, quando vou à Piracicaba, ainda visito a D. Jandira, muito menos do que gostaria e, cada vez que entro naquela casa, ainda hoje, tenho as mesmas memórias que você. Lembro de cada cantinho, da biblioteca, parecendo que a qualquer minuto, ele vai aparecer com um livro na mão. Saudades…De vez em quando minha mãe guarda algum escrito seu do jornal para eu ler.. Agora vou acompanhar o seu blog. Parabéns…
Anônimo
22 de outubro de 2013
Luis Fernando, desculpe. Na hora de enviar, saiu como anônimo. Sou a Ana Silvia
Rebeca Vaz
25 de outubro de 2013
Eu também tive aulas com “Seo” Argemiro! E lendo seu texto pude revê-lo inteirinho… foi emocionante!
Abçs,
Adalberto José Brasaca
10 de novembro de 2013
Realmente o “seo” Argemiro era um professor ímpar. Estudei no Jorge Coury de 1975 a 1978 e tive o grande privilégio de receber conhecimento deste grande homem. Nunca me esquecí de uma piada que ele contou em sala de aula, na qual dois assaltantes estavam na cidade de São Paulo e, ao abordarem uma pessoa, informaram: “É UM ASSARTO !!!”. E o “seo” Argemiro falou a frase com um sotaque bem caipira. Então, ele finalizou a piada dizendo que a polícia havia prendido os bandidos quando os mesmos desceram do ônibus na rodoviária de Piracicaba. Lendo seu artigo, me sentí retornando a uma época em que alunos realmente respeitavam seus mestres (pelo menos a esmagadora maioria !), relembrando também de vários amigos do colégio que se foram muito cedo, infelizmente…
Denize Bethiol
30 de novembro de 2013
Fomos vizinhos… Embora por pouco tempo, privei da amizade de toda família…Sr Miro era especial…
Eloisa de Mattos Hofling
19 de outubro de 2019
Texto bonito,respeitoso,sensivel…
E a mim,professora que fui a vida inteira,me sensibilizou especialmente!
samuel limongi
5 de setembro de 2020
a cada vez que passo em frente a casa onde morou esse grande mestre, fica a saudade pela sua grande generosidade . fui seu aluno de 1972 a 1974 no Jorge coury
Wilney Saipp
10 de junho de 2021
Atesto tudo que foi falado. O meu professor Argemiro Ramos foi uma pessoa excepcional, uma bondade infinita e uma capacidade incomparável de ensinar. Tudo que sei da língua portuguesa devo a ele. Ele foi meu professor no colégio Jorge couro em 1970,71, 72 até 74. inesquecivel
Érika Bonato
12 de agosto de 2021
Lindo texto. Também fui aluna do “seo” Algemiro no CLQ e guardo com carinho e admiração a figura desse importante dignitário e mestre da Língua Portuguesa. Meu saudoso professor.
Guardo na lembrança sua imagem, seu modo de administrar as aulas.
Estudei com o Caio, filho do grande Algemiro Ramos, no antigo ginásio, no CLQ;