Crônicas de Telópoli: O mundo como mesa de cerveja.

Posted on 17 de outubro de 2013 por

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Eu e Dani Backer

Na mesa de cerveja, conversávamos, eu, Mary e amigos, sobre a falta de solidariedade no mundo de hoje. Aí levantei a lebre: quando as pessoas do mundo foram mais solidárias?

Naquela mesa circulava a ideia de que existiu um passado recente no qual as pessoas se respeitavam, passado em que cultuavam ao menos um clima de mais solidariedade.

Então pensei (e disse): – Que mundo perfeito foi esse que passou? Que respeito era esse que pautava esse mundo idílico? O mundo do respeito ao homem pela mulher? Ao senhor pelo servo? À autoridade déspota pelo oprimido?

É possível, mesmo, crer no mundo paradisíaco da passividade e do consenso? Há coerência na ética da conciliação?

Proponho, com tais questionamentos: a violência, a agressividade, a transgressão?

Não. Não só. Nem tanto. Mais do que proposição quero aqui executar uma diagnose, uma constatação: Podemos, talvez, ler o nosso mundo como um mundo bom, como um mundo justo… Talvez, o melhor mundo que já tivemos…

Explico.

Nosso tempo é o tempo do conflito, das divergências. São tantas contradições, tantas discordâncias que se torna injusto dizermos “nosso mundo” ou “nossa realidade”: nos cabe a pluralidade dos “mundos”, das “realidades”.

Conflito, divergência, discordância, contradições… são palavras que, num passado não tão distante, foram máscaras do demônio, sintomas da infelicidade. Mas eis que a melhor das vidas, penso, é aquela que se vive com inteireza, cônscia de suas idiossincrasias.

…Eis aí o espírito de nosso tempo: a totalidade não totalitária da democracia cultivada em sua máxima potência: enquanto houver a liberdade do conflito, teremos certo que alguém não se sobrepôs a outro alguém; teremos certa a possibilidade da vida sem a violência de uma verdade dominadora (sempre totalitária, teocrática em sua estrutura) que reduziria nossas idiossincrasias tão humanas, demasiadamente humanas, ao solo estéril e histérico das verdades absolutas.

Auscultemos: debaixo do tapete persa que recobre o passado de glórias, abaixo dos confortáveis tempos que não voltam mais: temos a violência, a opressão… Por debaixo da calma ordem da família tradicional brasileira, por exemplo, sempre tivemos a docilização castradora da mulher – então feliz dona de casa – alijada de seu corpo, de seu gozo, de sua sexualidade, enquanto seus maridos e filhos perversos se divertiam com outras mulheres (de vida nada fácil): essas, curiosamente, sonhando com a vida da outra, a da senhora doméstica, pacata…fechando assim o perverso ciclo de dominação sexual (entenda: o machismo vitimiza, porque enquadra, homens e mulheres).

– Mas essa nossaliberdade de hoje, expressa às últimas consequências, nos leva também ao universo da perversidade (disseram ali, naquela mesa de discussões e cerveja)…

– E quando o mundo não foi perverso? (Eu respondi, perguntando). Quão perversa foi (e ainda é) a crença na sociedade tradicional, na família cristã, liberal, branca, monogâmica, proprietária, conduzida pelo homem provedor?

Como somos ainda românticos quando cremos no mundo perfeito do passado cortês distante, como se nossas violências e perversões atuais (tão assustadoras aos olhos carolas) não fossem sim heranças, efeitos colaterais, nada mais que o custo operacional da implantação da sociedade “normal” ocidental!

Quanto desperdiçamos de nossas energias, de nossas vontades, para construir um passado idílico, plasmado caricato aos nossos sonhos de miséria lúcida…

Acho que esse nosso tempo, de discordâncias e de conflitos de toda sorte, trouxe um novo elemento, muito enriquecedor para nossa consciência. Esse afloramento dos conflitos, tão árido certamente, traz à tona a dificuldade e a complexidade da construção de um (ou de alguns) real (ou reais) que deem conta da infinidade de possibilidades que significa “ser humano”.

Quando bagunçamos o mundo, deixamos que o outro aflore, fazemos com que o homem do espelho tome de assalto a hegemonia besta da placidez do homem moderno e da mulher moderna. Se isso quer dizer que deixamos de lado a construção do passado idílico e começamos a construir não um amanhã, mais um hoje mais sincero, mais inteiro: então quero acreditar que estamos mudando para melhor.

Talvez seja essa a metáfora perfeita para a vida da sociedade dos humanos: pensar a moral, a ética a partir da esquizofrenia honesta das mesas de cerveja.

Fábio Casemiro

Ao Amigo filósofo Paulo Morgado