Na mesa de cerveja, conversávamos, eu, Mary e amigos, sobre a falta de solidariedade no mundo de hoje. Aí levantei a lebre: quando as pessoas do mundo foram mais solidárias?
Naquela mesa circulava a ideia de que existiu um passado recente no qual as pessoas se respeitavam, passado em que cultuavam ao menos um clima de mais solidariedade.
Então pensei (e disse): – Que mundo perfeito foi esse que passou? Que respeito era esse que pautava esse mundo idílico? O mundo do respeito ao homem pela mulher? Ao senhor pelo servo? À autoridade déspota pelo oprimido?
É possível, mesmo, crer no mundo paradisíaco da passividade e do consenso? Há coerência na ética da conciliação?
Proponho, com tais questionamentos: a violência, a agressividade, a transgressão?
Não. Não só. Nem tanto. Mais do que proposição quero aqui executar uma diagnose, uma constatação: Podemos, talvez, ler o nosso mundo como um mundo bom, como um mundo justo… Talvez, o melhor mundo que já tivemos…
Explico.
Nosso tempo é o tempo do conflito, das divergências. São tantas contradições, tantas discordâncias que se torna injusto dizermos “nosso mundo” ou “nossa realidade”: nos cabe a pluralidade dos “mundos”, das “realidades”.
Conflito, divergência, discordância, contradições… são palavras que, num passado não tão distante, foram máscaras do demônio, sintomas da infelicidade. Mas eis que a melhor das vidas, penso, é aquela que se vive com inteireza, cônscia de suas idiossincrasias.
…Eis aí o espírito de nosso tempo: a totalidade não totalitária da democracia cultivada em sua máxima potência: enquanto houver a liberdade do conflito, teremos certo que alguém não se sobrepôs a outro alguém; teremos certa a possibilidade da vida sem a violência de uma verdade dominadora (sempre totalitária, teocrática em sua estrutura) que reduziria nossas idiossincrasias tão humanas, demasiadamente humanas, ao solo estéril e histérico das verdades absolutas.
Auscultemos: debaixo do tapete persa que recobre o passado de glórias, abaixo dos confortáveis tempos que não voltam mais: temos a violência, a opressão… Por debaixo da calma ordem da família tradicional brasileira, por exemplo, sempre tivemos a docilização castradora da mulher – então feliz dona de casa – alijada de seu corpo, de seu gozo, de sua sexualidade, enquanto seus maridos e filhos perversos se divertiam com outras mulheres (de vida nada fácil): essas, curiosamente, sonhando com a vida da outra, a da senhora doméstica, pacata…fechando assim o perverso ciclo de dominação sexual (entenda: o machismo vitimiza, porque enquadra, homens e mulheres).
– Mas essa nossaliberdade de hoje, expressa às últimas consequências, nos leva também ao universo da perversidade (disseram ali, naquela mesa de discussões e cerveja)…
– E quando o mundo não foi perverso? (Eu respondi, perguntando). Quão perversa foi (e ainda é) a crença na sociedade tradicional, na família cristã, liberal, branca, monogâmica, proprietária, conduzida pelo homem provedor?
Como somos ainda românticos quando cremos no mundo perfeito do passado cortês distante, como se nossas violências e perversões atuais (tão assustadoras aos olhos carolas) não fossem sim heranças, efeitos colaterais, nada mais que o custo operacional da implantação da sociedade “normal” ocidental!
Quanto desperdiçamos de nossas energias, de nossas vontades, para construir um passado idílico, plasmado caricato aos nossos sonhos de miséria lúcida…
Acho que esse nosso tempo, de discordâncias e de conflitos de toda sorte, trouxe um novo elemento, muito enriquecedor para nossa consciência. Esse afloramento dos conflitos, tão árido certamente, traz à tona a dificuldade e a complexidade da construção de um (ou de alguns) real (ou reais) que deem conta da infinidade de possibilidades que significa “ser humano”.
Quando bagunçamos o mundo, deixamos que o outro aflore, fazemos com que o homem do espelho tome de assalto a hegemonia besta da placidez do homem moderno e da mulher moderna. Se isso quer dizer que deixamos de lado a construção do passado idílico e começamos a construir não um amanhã, mais um hoje mais sincero, mais inteiro: então quero acreditar que estamos mudando para melhor.
Talvez seja essa a metáfora perfeita para a vida da sociedade dos humanos: pensar a moral, a ética a partir da esquizofrenia honesta das mesas de cerveja.
Fábio Casemiro
Ao Amigo filósofo Paulo Morgado
Gabriel Peret
17 de outubro de 2013
É interessante o pensamento. E como o autor do texto mencionou, são muitas as realidades e muitas as relações que se estabelecem em e entre essas realidades. Acredito, que quando no senso comum, se comenta na solidariedade de outros tempos, não se refere aí nas solidariedades entre as classes sociais, entre oprimidos e opressores, pois isso seria até ingênuo de se considerar. A solidariedade de outros tempos aflorava sobre a pele daqueles que se encontravam nas mesmas “realidades”. Não se trata da sociedade branca, e de sua família conservadora, mas sim da sociedade negra, dos índios, dos ribeirinhos e até mesmo dos brancos explorados, e escorraçados de seus “habitats” de tempos em tempos. Geralmente, vem daí esse termo de solidariedade, pois justamente pelo fato de sua opressão é que se fazia a necessidade da mútua ajuda. Esse é um grande problema de ordem histórica; nossa noção de temporalidade e das passagens históricas é geralmente conduzido pelos vencedores. E mesmo quando não, o vício se preserva e torna a análise quase sempre vertical em detrimento das horizontalidades sociais. Um parenteses temporalmente possível, é comparar a cultura de lugares mais e menos globalizados (culturalmente) e tentar sentir a solidariedade, receptividade, hospitalidade desses povos frente àqueles mais modernos.
São nítidas as diferenças de mútua ajuda que se pode identificar, por exemplo, quando se viaja por terra ao redor da América do Sul. A modernidade trouxe sim, junto com o neoliberalismo, algumas liberdades, e diante dessas novidades, agora podemos gozar de nossa “liberdade”; e distraídos por ela, esquecemos muitas vezes do que se passa com a pessoa ao lado. A evolução de que se fala, e da qual compartilho, mudou o foco dos interesses. Antes por não haver tantas opções, possibilidades, liberdades de pensamento e ação, tínhamos tempo para olhar a nossa volta. Hoje, brigamos conosco mesmo pra tentar por alguns minutos do dia, deixar de olhar para os nosso umbigos. A “liberdade” para consumir, para viajar, para se distrair, etc…”substituiu” qualquer necessidade de solidariedade. Nos distraímos com ela no cotidiano e esquecemos que podemos também ser solidários.
Viajar com um mochila nas costas pedindo carona, e verificar as diferentes solidariedades que compões regiões mais “avançadas” e “atrasadas” é um ótimo começo pra se entender que quanto mais modernos somos, menos solidários tendemos a ser.