Minha Tia e o Natal. Por Luis Fernando Amstalden

Posted on 18 de outubro de 2013 por

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Ontem, dia 17 de outubro de 2013, às 21:30, finalmente acabou. Minha tia nunca mais se levantou da cama ou falou depois da estada no hospital, em dezembro do ano passado, quando escrevi este texto. Não gosto de retomar textos antigos, mas republico este como minha homenagem a Tia Cida.

Peço desculpas a todos pela republicação, mas é a única coisa em que consigo pensar agora.

Eu tinha no máximo quatro anos quando minha tia me levou pela mão até o centro. Pouca idade, mas a lembrança se aferrou a minha mente como o fascínio das descobertas infantis geralmente faz. Caminhamos pela longa rua, mais longa na minha mente do que na realidade. No caminho eu via as luzes de Natal sendo instaladas. Vi crianças e adultos em volta de arbustos e árvores, acendendo as luzes no início da noite. E tudo era muito bonito.

Lembro-me também dos cheiros, cheiro de plantas, damas da noite e murtas, eu penso, além de outras ervas e matos que eu não posso identificar mais. Havia chovido antes e o calor do dia evaporava junto com os odores vegetais. A memória do olfato, tão poderosa, somada a memória visual e tátil. Eu sentia o ar refrescando e a noite caindo. E disso tudo eu me lembro muito bem.

Chegamos o teatro de igreja para assistir uma encenação do nascimento do Menino Jesus. Havia muita gente e  era bonito, novo, excitante. Luzes, pessoas, árvores de Natal, cheiros e sons. Mas também era um tanto assustador. Tudo era muito grande para meu tamanho de quatro anos. No entanto eu não tinha medo. Sentia a mão de minha tia segurando a minha. Tão grande era aquela mão, grande quanto a segurança que ela me passava.

Em algum momento ela me disse ao ouvido que estávamos ali para ver uma coisa muito boa. Estávamos ali para ver o Menino Jesus que iria nascer. O mesmo Menino cujo bercinho de madeira rústica meu pai havia feito por aqueles dias e eu, pelo menos assim acreditava, havia ajudado a fazer embora o mais provável é que eu só tenha atrapalhado.

Claro que eu não entendia este nascimento. Mas era algo muito bom, algo bom o suficiente para me deixar com aquela ansiedade agradável no estômago, ansiedade da alegria que estava para vir. Fiquei muito surpreso quando José e Maria, vestidos com túnicas, vieram caminhando desde a entrada do teatro e seguiram para o palco.

Não me recordo de muito mais. Apenas da cena final, com os anjos e os reis magos e também das palmas do povo. Mas me recordo da sensação de felicidade indefinida. A sensação de que o maravilhoso havia acontecido e agora restava somente a alegria que deveria continuar para sempre. Recordo ainda da multidão se dispersando e de minha segurança mantida, ainda pela mão de minha tia que apertava a minha.

Agora sou eu que aperto a mão de minha tia e ela é tão pequena. Tudo hoje parece muito grande, muito assustador, mas eu não sinto segurança alguma e, pior, não posso passar conforto algum para minha tia. Pela janela do hospital eu vejo reflexos das luzes de Natal. Cheiros de plantas, despertados pela chuva que já parou, entram no quarto, mas agora são outras plantas que eu já não consigo identificar.

Eu não sei se na mente devastada pelo Alzheimer, resta algum fiapo de lembrança do dia em que “vimos o Nascimento de Jesus”. Mas existe na minha. Tão forte que consigo ainda “sentir” os cheiros e o entardecer.

Agora sou um homem e a velhice não vai tardar. Um dia as minhas recordações também desaparecerão. No entanto, enquanto este dia não chegar, eu guardarei todas estas lembranças. E prometo a mim mesmo, Tia, aqui, segurando sua mão, que enquanto eu viver e puder, vou tentar passar a alguém a mesma segurança que a senhora me passou naquela noite e em muitas outras vezes. Tentarei passar, ainda, para todos que eu puder, a mágica expectativa de que o maravilhoso ainda vai nascer, e que a alegria será para sempre o nosso destino.

Esta é a única coisa que posso prometer e cumprir, aqui, segurando sua mão, vendo as luzes de Natal.

Dedicado a Maria Aparecida Amstalden