II – OBRA:
“BICHO” (1960)
… placas que então compunham, justapostas, a superfície branca do quadro, começaram a se levantar, buscando a terceira dimensão. Era como se o deserto, fecundado, ganhasse vida, se abrisse em pétalas, lentamente. Ela denominou esses novos quadros (seriam quadros?) de “casulos”. E nesses casulos dormiam de fato as larvas dos futuros “bichos” que, no meu entender, marcam o ponto culminante de sua experiência estética e um dos momentos mais significativos da arte brasileira. (Ferreira Gullar)
“Lygia Clark é uma das artistas brasileiras mais importantes e de maior reconhecimento internacional. Assim como Hélio Oiticica, transitou pelo movimento concreto, na década de 50, e é responsável por uma virada estética na arte brasileira. Suas experimentações levarão sua obra a uma poética do corpo como questão estética, apresentando proposições sensoriais e enfatizando a efemeridade do ato como única realidade existencial. A partir de suas obras denominadas “Bicho”, nas quais o público é instado a manipular, Clark introduz o conceito de participação, que terá desdobramentos importantes na arte dos anos 70.” (FGV-DIREITO/2008)
Fotografia de exposição de Lygia Clark no Rio, 1960.
No início dos anos 60, a artista parte para a experiência tridimensional, é o momento de seus “Bichos”, construções compostas de placas geométricas em metal, articuladas por charneiras, dispositivos de que se serve a autora para provocar a co-participação do espectador, um evento decisivo em seu comportamento futuro.
Essas peças, uma entre as muitas inovações da época, visando o outro lado da superfície (o seu avesso), de evidentes conotações com o mundo biológico, sofrem processos transformativos diante da intervenção daquele que não pode ser o seu mero sujeito de contemplação. Dessa forma, sua obra vai perdendo gradativamente o caráter de objeto, convertendo-se em proposições que se situam na fronteira entre a arte e a terapia corporal.
Depondo sobre o “Bicho” a autora afirma: “É um organismo vivo, uma obra essencialmente ativa. Uma integração total, existencial, estabelecida entre ele e nós. É impossível entre nós e o Bicho uma atitude de passividade, nem de nossa parte nem da parte dele.”
Trata-se de uma escultura maleável, tocável que faz o espectador pensar e tirar várias interpretações.
“O monte de metal é um monte de metal, mas ganhará forma quando nós mexermos nele.” Não têm o lado de cima, o lado de baixo, o lado direito, o lado esquerdo – podem ser postos em qualquer posição. E, além disso não tem uma forma fixa, permanente: as suas placas, interligadas por dobradiças, movem-se e o “Bicho” se transforma pela ação manual do espectador.
O artista propõe e nós aceitamos o desafio ou não. A escultura é uma matéria bruta e precisa da nossa ação (manusearmos). Nós chegamos a ele e assumimos uma postura ativa. É uma arte que só acontece quando interagimos com ela; senão, ela é nada. Desse modo, quebra o distanciamento entre obra e leitor, que passa a manipulá-la, é chamado a conviver com a obra.
Pesquisa que começa trabalhando a decisão e a responsabilidade. Uma pesquisa interna, terapêutica (investigação para dentro do ser) e de uma consciência corporal que diz respeito a você entregar-se a um exercício.
Fotografia da Sala Especial de Lygia Clark na Bienal de Veneza, 1968.
A artista propõe um modelo de auto-investigação e isso pode proporcionar esculturas também livres, afinal você é livre para a escolha. Ela te dá uma ideia e você é responsável por ela, portanto arte interativa.
Sua poética, portanto, supera o suporte, propõe a desmistificação da arte e do artista e a desalienação do espectador, que passa a compartilhar de sua criação.
A obra deixa de ser contemplativa e passa a circundar a realidade do espectador, evoluindo a pesquisa de meios de comunicação que superam a dimensão unicamente visual.
A série de obras de Lygia Clark intitulada “Bichos” (esculturas metálicas com dobradiças para serem manipuladas pelo público) onde a presença do espectador se torna fundamental, mantendo a obra “sempre viva”, ou nas palavras do manifesto a “realidade não se esgota nas relações exteriores”, é um exemplo da superação da natureza estática que há na rigidez das formas geométricas, em favor de uma apresentação espacial dinâmica ou cinética, e de criar objetos artísticos pluridimensionais.
Fotografia de Lygia Clark na I Exposição Neoconcreta, 1959, em frente às suas obras Unidades (no 1 – no 7), de 1958.
A obtenção da tridimensionalidade era essencial no Neoconcretismo, possibilitando ver totalidade da forma solta no ar.
O suporte, desse modo, deixaria de ser a tela ou a base da escultura para ser o próprio corpo. Esta substituição de um suporte convencionado por um suporte natural indica o caráter radical da arte Neoconcreta. Ela pretendia realizar-se entre a natureza e a cultura, quase antes dessa, como formulação primeira do real.
A participação do espectador na obra, fazendo com que ele tomasse parte na sua explicitação, despertaria nele a consciência de poder ser agente da mudança e a arte agiria como instrumento de construção da sociedade, afirmava Ronaldo Brito.
Porém, Lygia Pape discorda desta afirmação e acrescenta que “no neoconcretismo a ideia de “inventar” coisas novas seria uma postura revolucionária que não implicava nem em política nem em participação.”
Mário Pedrosa define a arte Neoconcreta como “a pré-história da arte brasileira”, na medida em que questiona os fundamentos da linguagem artística existente e propõe uma volta ao “começo” da arte.
O Manifesto Neoconcreto, apoiando-se na filosofia de Merleau-Ponty, recuperava o humano, reabilitando o sensível e revitalizava o relacionamento do sujeito com seu trabalho.
Fotografia de Lygia Clark, Mário Pedrosa e José Carlos Oliveira, publicada no Jornal do Brasil, 1959.
A obra de Lygia Clark é de uma modernidade drástica, pois simboliza a morte do objeto artístico e privilegia a interação do espectador com o objeto tridimensional.
Mesmo com a morte simbólica do objeto, a arte está lá envolvida pela experimentação, pelo dualismo, pela negação e a exacerbação da forma: a linguagem da obra perde o exílio e ganha a participação ativa do espectador que deixa de ser “espectador” para ser co-autor da obra artística.
Em períodos sofridos e de longos hiatos colocava em dúvida suas certezas estéticas. Passava de uma descoberta para outra. O grande dilema da artista sempre foi como produzir algo que não fosse reduzido apenas ao objeto artístico ou que encontrasse uma situação confortável nas correntes estéticas da arte.
Valéria Pisauro é professora de Literatura e História da Arte, e mantém esta coluna no Blog.
Anônimo
26 de outubro de 2013
“Bichos” é uma grande inovação no mundo das artes…
Anônimo
27 de outubro de 2013
Como era elegante!