Ela poderia ter saído de qualquer dos livros de Jorge Amado ou das pinturas de Di Cavalcanti! De ancas fartas e andar bamboleante, carapinha sempre arrumada, lábios carnudos, sobrancelhas desenhadas, mãos na cintura fina e o sorriso sempre presente antes da gargalhada contagiante. Olhos de jabuticaba doces, mãos que foram feitas para mexer manjares, feijões, galinhadas, carurús, munguzá, pamonhas e camarões! Ah! A canja de galinha! Ui! A cocada de coco branquinha! E o bifinho de panela perfumando toda a casa?Cantando ao cozinhar as emboladas nordestinas aos sucessos de Dick Farney e Adoniram Barbosa, cantava ao lavar sua roupa, ao balanço da rede, era fã dos programas de auditório e noticiáriospoliciais no rádio e das páginas policiais do Jornal O Norte! Mas ela só sabia assinar seu nome…
Ouvi dizer que “ela se perdeu” e estava grávida… Foi assim que aprendi que para ter filho não precisava casar! Ela estava grávida! Mas perdida? Não acho! Ah! Não! Ela tinha se encontrado, amava a barriga turgida, detestava os enjoos e cuspidas esbranquiçadas na calçada quente, adorava fazer o enxovalzinho do bebê que nem de gente rica! Ela era uma mãe e tanto, orgulhosa e de seios cheios de leite numa época que só quem amamentava eram os pobres…Quando acordava de tráz para frente, ninguém entrava na cozinha! Braba e respondona tinha seus dias de diva até de princesa e dona de casa… foi mãe, casou, teve outros filhos e cuidou das netas! Tinha vocação para isso…
Aprendi com ela a gargalhar, a chamar palavrões:
_“Bexiga taboca, moléstia dos cachorros, estupor balaio”!
Minha mãe sempre dizia:
-“Luzia quando se irritar chame “inseto” e não use palavrões”! Ah! E não é que ela tentou?E de repente, vinham da cozinha os gritos ecoando pela casa:
_ “INSETO! INSETO! INSETO! Insetodabexigatabocadamoléstiadoscachorrosdoestuporbalaio! que inferno!” E nossos risos ecoavam pela casa inteira… nunca conseguiu ser mesmo uma dama!
A arte de descascar laranja sem cortar o dedo nem a pele e jogar nos caibros do telhado do puxado da D. Pedro I e fazer um pedido era com ela! Aprendi também que “berruga” nasce quando agente conta estrela no céu, aprendi como erafresco o chão do terraço encerado nas tardes quentes de verão, a comer feijão gelado com banana prata e farinha de mandioca no lanche da tarde! Nas noites escuras de apagões, ela tinha sempre uma estória da Carochinha, uma alma penada que tinha puxado a sua perna na noite anterior, os “fogo fato” dos animais enterrados nos sertões da Paraíba, as mulas sem cabeças, os sacis pererês, Dona Rosinha a embaralhar as crinas dos cavalos e entrou por uma perna de pinto, saiu por uma perna de pato e seu Rei mandou que contasse mais quatro, quando cansada de tanto falar queria ouvir o “silêncio” da noite!
Matar galinha, cortar pescoço de pato e sair correndo atrás do pato com cabeça pendurada as gargalhadas, fazer cola de goma, aguar o jardim, raspar milho no São João, comprar móveis de arame na feira e panelinhas de barro, fazer canudo de mamoeiros e sentar no muro com as pernas balançando para a calçada e cantar: bolinhas de sabão! Puft! Faziam parte do seu repertório… E o chazinho de hortelã e de cidreira no bule de flores laranja que me davam desde essa época um ar inglês?E comer jambo maduro estourado no calçamento e ficar de língua roxa de comer oliveira? E caçar formigas?E ficar em pé nas asas da galinha para ver o sangue escorrer e bater a cabidela com o vinagre! E chupar mangas e maguitos para fazer bonecas de cabelo louro? E aprender a usar o anil, fazendo tudo ficar mais branquinho e da cor do céu? E limpar os pés ralando o calcanhar no cimento molhado? E pegar ovo de gansa e sair correndo de medo dos gritos ecoando pelo quintal: “Avexe menina!!! Que cabrita mais preguiçosa essa Aninha!! Corre danada!” era o som que fazia eu passar sebo nas canelas e correr e gargalhar… ela me achava linda… e ela me achava linda…
Ela também era bonita, linda! Ah! Que negra mais formosa! Com seu perfume Parisiana, seu rouge carmim e seus batons vermelhos ou rosa escuro da cor do esmalte. As saias rodadas, sobre sua calcinha branca de botões laterais e anáguas com bicos de renda e soutiens de enchimento a la Madona. E eu ficava lá, no quartinho das empregadas, admirando a transformação de cozinheira em morena faceira! Penteando em frente ao espelho os cabelos recém-tirados dos bobeis após alisá-los e passa-los na cerveja, brilhantes, negros! Os pingos do suor a escorrer pelo rosto empoado de pó compacto, e o dente de ouro a embelezar ainda mais o sorriso… Lá ia Luzia, cantarolando pela lateral da casa, subindo os degraus de salto alto, entrando na cozinha e abrindo a geladeira e se abanado após se refrescar com um copo d´água gelada!
“Já vou!!!…”
E lá vai ela, lá vai ela… Rebolando,feliz, cantando, livre sem dores e cheia de luz e de vida eterna, adentrando pelo céu!
Faleceu em 13/10/2013
Luzia Onório do Morais Nascimento, minha babá e cozinheira da nossa família.
Hannah Verheul Mãe e esposa, Dentista e Higienista Bucal, especialista em Endodontia, Profa. de Patologia Bucal do CCS-DCOS-UFPB, Ph D e MS em Patologia Bucal, Pós-doc. em Microbiologia e Biologia Celular no UCL Eastman Dental Institute – University College London, e residente do Reino Unido desde 2001.
hannah verheul
19 de dezembro de 2013
Querido amigo… me emociono e volto ao pasasdo… que todos que possam ler essa historia lembrem e como eramos feliz no Brasil, onde as diferencas nao precisavam de leis para que pudessemos amar incondicionalmente os afro descentendetes!!!
Hannah Verheul