Todos conhecem o conceito cristão de que somos feitos “à imagem e semelhança de Deus”. É uma ideia bastante difundida, e que tem servido para justificar toda uma série de críticas à visão cristã do homem, inclusive a famosa alegação de Feuerbach (1804-1872)de que, na verdade, teria sido o homem a criar um Deus à sua própria “imagem e semelhança”. A ciência deu sua contribuição a outro tipo de crítica, ao deslocar o homem do centro da existência para uma periferia longínqua de um universo “infinito”, relegando-o à condição de subproduto da mais insignificante poeira cósmica. E, atualmente, o ateísmo militante vem contestando a própria necessidade de uma visão religiosa da existência, substituindo a antiga moral cristã (no caso Ocidental) por uma ética comportamental laica, autossuficiente e perfeitamente descolada de qualquer princípio transcendente. Todas estas ideias parecem demolir o edifício cristão, soterrando sob seus escombros a identidade místicaentre o homem e seu Criador.
As pessoas de formação religiosa, em particular aquelas formadas no Cristianismo Romano, sentem-se acuadas por esta tríplice ofensiva, para a qual parece não haver uma resposta eficaz. Aqui é preciso fazer um parêntese, já que falamos em Cristianismo Romano, que será importante ter em mente nas considerações a seguir: de fato, é preciso estabelecer, no seio da Igreja de Cristo, uma distinção fundamental entre a Igreja Católica Apostólica Romana e a Igreja Católica Apostólica Ortodoxa, ou Igreja do Oriente, distinção que é resultado de uma divisão ocorrida no ano de 1054, quando a Igreja única primitiva sofreu o cisma de Roma que, por razões políticas e doutrinais, se separou da Ortodoxia para trilhar outro caminho.A partir daí, separada de suas raízes longínquas por sucessivas reformas, a Igreja de Roma distanciou-se de sua teologia mística original, substituindo-a progressivamente por uma discussão filosófica estéril das bases da fé, que se iniciou no final da Idade Média para desembocar finalmente numa simples elaboração “moral” dos ensinamentos de Cristo, da qual os exemplos mais extremos foram produzidos dentro da chamada “reforma” Protestante. Deste modo, tem-se a impressão, hoje em dia e especificamente no Ocidente, de que o objetivo fundamental da doutrina cristã é o de formar pessoas “de bem”, preocupadas em manter um comportamento disciplinado, moralistas e solidárias com o sofrimento alheio – ao menos na medida em que isto não custe demasiado sacrifício. É óbvio, por outro lado, que não é necessário ser cristão para se comportar assim, e a Biologia vem de demonstrar recentemente que até os macacos Bonobo são capazes de expressar sentimentos de bondade, solidariedade e altruísmo. Parece evidente que não foi por isto que Cristo se deixou crucificar, pois o ser humano jamais necessitou de uma chancela espiritual para se comportar em sociedade – para tanto, os códigos civis e penais bastam amplamente, como já bastavam ao tempo dos Césares, e mesmo antes, desde a promulgação do código de Hamurabi, que nada tem de religioso.
Quando a Bíblia menciona que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, os primitivos cristãos, cujas ideias e cuja teologia foram conservadas pela Igreja do Oriente, entendem este conceito de modo totalmente distinto do que é propagado no Ocidente. De fato, todo homem é feito à imagem de Deus, e isto é uma ideia que não tem nenhuma exclusividade cristã: o próprio Islam afirma que o homem é um pequeno universo, e o universo um grande homem. Trata-se do conceito, também difundido no hermetismo, do microcosmo e do macrocosmo. Mas os antigos Padres do Deserto da Igreja do Oriente comparavam isto a quando fazemos um desenho de uma pessoa: começamos por um rascunho, no qual delineamos as linhas básicas do rosto, os olhos, nariz, orelhas, boca, cabelos, etc., criando uma primeira imagem do retratado. Mas este desenho ainda não é semelhante à pessoa: para que esta semelhança apareça, será preciso dar-lhe cores, luzes e sombras, linhas e texturas, até que o retrato se torne idêntico ao retratado. Da mesma forma, dizem os antigos, somos todos feitos à imagem de Deus; mas a semelhança tem que ser construída, conquistada, merecida. E ela só pode ser alcançada por meio da prática das virtudes e dos mandamentos divinos.
Aqui entra em cena uma distinção fundamental entre o modo de entender o homem no Ocidente e no Oriente. A Igreja de Roma colocará o homem no centro das decisões que o levarão ao céu, baseando este poder no “livre arbítrio” outorgado a ele pelo próprio Deus. No Oriente, o homem entrega todo o seu destino a Deus, esvaziando-se de sua autodeterminação e anulando sua vontade própria para cumprir exclusivamente o querer divino. Ora, esta última postura implica a certeza de um projeto de Deus para o homem, e, mais do que isto, a certeza de que este projeto é atual e realizável no presente, e não apenas prometido para uma vida futura cheia de incertezas. Esta posição está alicerçada no primeiro mandamento, que manda “amar a Deus sobre todas as coisas”.
Marcos o Asceta, eremita que viveu no deserto do Egito por volta do século V, escreveu a respeito: “É bom deter-se no primeiro mandamento, de não ter nenhuma necessidade em especial, de não rezar por nenhuma intenção particular, de não buscar senão o Reino dos céus e a palavra de Deus”. Este é o significado profundo do primeiro mandamento: aqui o “amar sobre todas as coisas” implica abandonar-se a Deus, deixando de lado todas as circunstâncias deste mundo, sem se preocupar com nada senão com a busca da compreensão dos mistérios divinos.É o início do “esvaziamento de si”, da libertação das próprias vontades e das paixões deste mundo, para concentrar-se num único objetivo: a união com o Um.
Pois se Deus é tudo e nada existe fora dele, nenhuma dualidade poderá descrevê-lo: ele é a própria Unidade, e só poderá ser conhecido como e enquanto tal. Por esta razão, é inútil ao homem aproximar-se de Deus a partir de si próprio, pois, ainda que se esforce ao máximo, permanecerá sempre dentro de uma relação sujeito-objeto que é contrária à noção do Um. Daí a exigência do primeiro mandamento, que afirma implicitamente esta Unidade, fora da qual nada existe que valha ser conhecido. Simeão o Novo Teólogo, que viveu por volta do ano 1000, afirma que o cristão “deve permanecer livre de qualquer preocupação, ser livre e incontestavelmente desembaraçado de todos os negócios desta vida”. Se formos capazes de dar este primeiro passo, teremos iniciado nosso caminho em direção à semelhança com o Criador, na medida em que esta ainda é possível ao homem.
Assim, a prática das virtudes que levará a esta semelhança começará pela mais fundamental de todas: o desapego, quer este se manifeste como humildade, quer como longanimidade, quer como ascese. Todos estes caminhos conduzirão ao mesmo objetivo: uma diminuição da importância que atribuímos a nós mesmos, importância que é descrita numa palavra como filáucia, o amor a si próprio. É a imagem que nos transmite o conceito crístico da “pobreza”, na qual o Mestre tanto insiste: o despojamento total, a indiferença em relação ao que comer, ao que vestir, às normas impositivas e à opinião que os outros fazem de nós. “Quem se humilha será exaltado”, nos disse ele.
A experiência mística proposta pela Igreja do Oriente afasta-se assim, radicalmente, da autossatisfação e do conforto moral proporcionado pela “prática do bem” que é o fundamento do comportamento cristão ocidental. A ação social, no Oriente, acontece como uma consequência do trabalho interior, que é construído a partir de uma prática de oração e de concentração sobre Deus, para daí chegar ao próximo, e não ao contrário, como preconiza a Igreja de Roma. Por esta razão, a mística oriental continua a produzir a “experiência do Um”, que permite ao homem compreender o sentido da verdadeira semelhança com Deus. Para o cristão ocidental, resta contentar-se com a condição de imagem, que é aquilo que encontramos, de imediato, no nosso próximo; e é por isso que Roma insiste tanto na identificação que devemos ter para com este próximo.
No Oriente, alcançado o estado de “semelhança”, que, insistem os Padres do Deserto e mesmo alguns místicos dos séculos XVIII, XIX e XX, é a única realidade positiva, torna-se possível entender o mundo inteiro como semelhante a Deus, “lugar de Deus” se podemos nos expressar assim. A partir daí, o próximo representará para nós o próprio Deus, já não sua mera imagem: pois o Reino dos céus está dentro de cada um de nós.
Luis Kehl é, dentre outras coisa, músico e membro da Igreja Católica Ortodoxa.
blogdoamstalden
21 de janeiro de 2014
Luis. Muitos anos atrás, li as histórias do “peregrino russo”. Lembro-me de ter percebido, na leitura, o “abandono” do ego que vc. cita. Também fiz na época e faço, uma correlação com o pensamento do Extremo Oriente, em particular do Zen e de outras tradições similares. Gostei muito. Espero que vc. nos brinde com mais artigos. Abraço.
Carla Betta
22 de janeiro de 2014
Muito bom o artigo! Aguardarei o próximo ansiosamente!