Ti e as Cigarras. Por Luis Fernando Amstalden

Posted on 5 de março de 2014 por

20



Quando chegou a São Paulo, com apenas alguns meses de vida, sofria de malária e estava tão desnutrido que seu intestino não havia se desenvolvido o suficiente. Rejeitado por sua tribo, no Xingu, foi trazido pelas mãos do sertanista Orlando Villas Boas. Seus pais adotivos o levaram do aeroporto para o hospital e temiam que ele não sobrevivesse. Resistiu e veio morar em uma chácara, junto com a família e irmãos adotivos. Quando o conheci, devia ter já uns dezesseis anos. Era calado, silencioso e raramente participava das conversas e risos coletivos. Sentava-se conosco e apenas ficava ali. Respondia se perguntado, mas praticamente não tomava a iniciativa.

A verdade é que ele pareceu nunca ter se adaptado. Teve problemas na escola, problemas com a família, era solitário e não interagia, a não ser com poucas pessoas. Eu nunca entendi por que. Acho que ninguém entendia. A mim era difícil acreditar que este isolamento era devido a sua origem indígena. Fora criado na cidade e eu não sou um partidário das teorias que definem a personalidade pela genética e assim, às vezes eu pensava que os problemas dos primeiros meses de vida haviam deixado marcas muito fundas, inconscientes, que o afastavam dos demais.

Uma tarde sentou-se perto de todos e, para nossa surpresa, falou sem ser perguntado. Disse simplesmente: “hoje à noite, nascem as cigarras”. Lembro-me de que todos silenciaram. Não era comum o Ti, como nós o chamávamos, falar por iniciativa própria. Alguém perguntou como ele sabia. E ele apenas disse que sabia e era naquela noite, mas completou: “venham e vocês vão ver”. Decidimos voltar. E pelas dez da noite estávamos todos lá. Ti trouxe uma lanterna pequena, mas deixou as luzes da chácara apagadas, para não atrapalhar. Devagarzinho, com cuidado, mas com uma segurança imensa, nos guiou á um lugar da chácara. Movia-se com precisão, não esbarrava e quase não usava a lanterna. Nós simplesmente o seguíamos. E naquele ponto, vimos o milagre. As cigarras, ainda na fase e que pareciam besouros comuns, subiam ao tronco das árvores, aos galhos dos arbustos e se imobilizavam. Aos poucos a casca rachava, na parte superior, e lentamente, ainda esbranquiçadas, saiam com as asas molhadas. Com uma lentidão maravilhosa, se acomodavam em cima da própria casca e então começavam a bater as asas, cada vez mais forte, testando-as e secando-as. Não tenho idéia de quanto tempo ficamos ali assistindo ao espetáculo, até porque ficamos tão fascinados que o tempo “parou”. Não havia pressa, não havia urgência, havia apenas a vida desabrochando, se transformando. As cigarras vivem tão pouco, mas naquele momento, pareciam ter a eternidade para se transformar.

Naquela noite, eu descobri que Ti era, ainda, um índio. Não me pergunte por que, nem como. Volto a dizer que foi criado longe dos seus. Mas a forma, a habilidade com que se movia entre as árvores, como encontrava os recantos, era algo que nem seus pais, nem seus irmãos, que também viviam ali toda a vida, tinham. Como ele sabia das cigarras? Como conhecia o momento exato? Nunca ninguém soube e ele simplesmente dizia que era assim. Ele estava lá, mais do que qualquer um de nós. E conhecida aquele pedaço de terra mais do que todos. Tempos depois, foi a vez dos vaga-lumes. Quando ele anunciou que era noite deles aparecerem, ninguém duvidou ou perguntou. Voltamos novamente e, por outra vez, ficamos hipnotizados pela beleza da revoada brilhante dos insetos.

Ti viveu muitos problemas depois. Jovem, adulto, errou bastante. Fez sofrer e sofreu. Ao final migrou para o Japão e foi trabalhar como operário. Eu temi, na época, que ele não se adaptasse de forma alguma. Mas foi o contrário. Ficou lá por mais de dez anos. Encontrou uma companheira e se integrou. Voltou quando adoeceu. Queria retornar ao Japão, mas a doença era grave demais e ele terminou seus dias por aqui. Disse a seu pai que achava que adoecera para pagar pelos erros passados. Talvez…

Talvez seja assim. Tudo é um mistério, afinal. Desde a forma como ele parecia ser, na personalidade, ainda um índio, até o nascimento das cigarras. Diante tantos mistérios, eu não posso deixar de pensar que existem muitos outros. E, quem sabe, não exista morte, não exista tempo. Apenas uma troca de antigas cascas e um novo ser, com asas, para cada um de nós. Se for assim, Ti já voa agora, com sua nova forma.

Em memória de Auiti Komatsu

Posted in: Artigos