Quando chegou a São Paulo, com apenas alguns meses de vida, sofria de malária e estava tão desnutrido que seu intestino não havia se desenvolvido o suficiente. Rejeitado por sua tribo, no Xingu, foi trazido pelas mãos do sertanista Orlando Villas Boas. Seus pais adotivos o levaram do aeroporto para o hospital e temiam que ele não sobrevivesse. Resistiu e veio morar em uma chácara, junto com a família e irmãos adotivos. Quando o conheci, devia ter já uns dezesseis anos. Era calado, silencioso e raramente participava das conversas e risos coletivos. Sentava-se conosco e apenas ficava ali. Respondia se perguntado, mas praticamente não tomava a iniciativa.
A verdade é que ele pareceu nunca ter se adaptado. Teve problemas na escola, problemas com a família, era solitário e não interagia, a não ser com poucas pessoas. Eu nunca entendi por que. Acho que ninguém entendia. A mim era difícil acreditar que este isolamento era devido a sua origem indígena. Fora criado na cidade e eu não sou um partidário das teorias que definem a personalidade pela genética e assim, às vezes eu pensava que os problemas dos primeiros meses de vida haviam deixado marcas muito fundas, inconscientes, que o afastavam dos demais.
Uma tarde sentou-se perto de todos e, para nossa surpresa, falou sem ser perguntado. Disse simplesmente: “hoje à noite, nascem as cigarras”. Lembro-me de que todos silenciaram. Não era comum o Ti, como nós o chamávamos, falar por iniciativa própria. Alguém perguntou como ele sabia. E ele apenas disse que sabia e era naquela noite, mas completou: “venham e vocês vão ver”. Decidimos voltar. E pelas dez da noite estávamos todos lá. Ti trouxe uma lanterna pequena, mas deixou as luzes da chácara apagadas, para não atrapalhar. Devagarzinho, com cuidado, mas com uma segurança imensa, nos guiou á um lugar da chácara. Movia-se com precisão, não esbarrava e quase não usava a lanterna. Nós simplesmente o seguíamos. E naquele ponto, vimos o milagre. As cigarras, ainda na fase e que pareciam besouros comuns, subiam ao tronco das árvores, aos galhos dos arbustos e se imobilizavam. Aos poucos a casca rachava, na parte superior, e lentamente, ainda esbranquiçadas, saiam com as asas molhadas. Com uma lentidão maravilhosa, se acomodavam em cima da própria casca e então começavam a bater as asas, cada vez mais forte, testando-as e secando-as. Não tenho idéia de quanto tempo ficamos ali assistindo ao espetáculo, até porque ficamos tão fascinados que o tempo “parou”. Não havia pressa, não havia urgência, havia apenas a vida desabrochando, se transformando. As cigarras vivem tão pouco, mas naquele momento, pareciam ter a eternidade para se transformar.
Naquela noite, eu descobri que Ti era, ainda, um índio. Não me pergunte por que, nem como. Volto a dizer que foi criado longe dos seus. Mas a forma, a habilidade com que se movia entre as árvores, como encontrava os recantos, era algo que nem seus pais, nem seus irmãos, que também viviam ali toda a vida, tinham. Como ele sabia das cigarras? Como conhecia o momento exato? Nunca ninguém soube e ele simplesmente dizia que era assim. Ele estava lá, mais do que qualquer um de nós. E conhecida aquele pedaço de terra mais do que todos. Tempos depois, foi a vez dos vaga-lumes. Quando ele anunciou que era noite deles aparecerem, ninguém duvidou ou perguntou. Voltamos novamente e, por outra vez, ficamos hipnotizados pela beleza da revoada brilhante dos insetos.
Ti viveu muitos problemas depois. Jovem, adulto, errou bastante. Fez sofrer e sofreu. Ao final migrou para o Japão e foi trabalhar como operário. Eu temi, na época, que ele não se adaptasse de forma alguma. Mas foi o contrário. Ficou lá por mais de dez anos. Encontrou uma companheira e se integrou. Voltou quando adoeceu. Queria retornar ao Japão, mas a doença era grave demais e ele terminou seus dias por aqui. Disse a seu pai que achava que adoecera para pagar pelos erros passados. Talvez…
Talvez seja assim. Tudo é um mistério, afinal. Desde a forma como ele parecia ser, na personalidade, ainda um índio, até o nascimento das cigarras. Diante tantos mistérios, eu não posso deixar de pensar que existem muitos outros. E, quem sabe, não exista morte, não exista tempo. Apenas uma troca de antigas cascas e um novo ser, com asas, para cada um de nós. Se for assim, Ti já voa agora, com sua nova forma.
Em memória de Auiti Komatsu
Evandro Mangueira
5 de março de 2014
Bela história, os vaga-lumes são os animais mais impressionantes que já vi, quando criança eu tentava compreender como geravam energia.
blogdoamstalden
5 de março de 2014
A revoada que o Ti nos mostrou foi a mais bonita que já vi.
andregorga
5 de março de 2014
Que texto maravilhoso, Luís. Lembro-me do quanto ele era calado, lembro-me que você comentou, na época, sobre o pressentimento dele quanto ao “nascimento” das cigarras, que, na verdade, foi quando elas se transformaram de ninfas a insetos com asas (e essa “gestação” das ninfas, pelo que li, dependendo da espécie, pode durar de 1 a 17 anos – como ele poderia saber? Incrível, não é mesmo?), lembro-me dele da época anterior à viagem ao Japão, quando ele teve experiências com artesanato. Eu não sabia que ele havia morado tanto tempo fora e não soube da doença, nem de sua morte. Um pena. Abraço.
blogdoamstalden
5 de março de 2014
Pois é, André. Tomara ele esteja bem.
Carla Betta
5 de março de 2014
Belo texto, quanta sensibilidade, Luis! O que nos faz humanos? O que nos constrói? A genética? O ambiente? O que guardamos no inconsciente de nossos primeiros tempos de vida? As experiências de vidas passadas? Tudo isto? Como equacionamos tudo isto? Grandes mistérios!!
blogdoamstalden
5 de março de 2014
Mistérios que, nesta vida, Carla, nós não decifraremos.
Cinthia Siqueira
5 de março de 2014
Voltei no tempo Luis. Na época, minha timidez e imaturidade não me permitiam tentar compreender o Ti, mas lembro-me dele e do quanto me intrigava. Hoje li um texto da Nina Horta na Folha – Exílio (http://www1.folha.uol.com.br/comida/2014/03/1421015-nina-horta-exilio.shtml) que fala sobre nosso estranhamento ao outro, ao diferente e para o Ti, éramos o estrangeiro. Fico pensando em quanto perdemos tentando trazer o outro para nosso mundo – um desperdício. Partilho a ideia de que nos formamos nas relações, mas o Ti sabia (creio eu) que pertencia a outra cultura e isso alterava a forma como se relacionava e o deslocava para a observação, contemplação e busca pela identidade. Mistérios, como disse, marcas profundas que desconhecemos. Lamento por sua morte. Abraços, com saudades! Sinto falta de nossas conversas, um papo bom hoje em dia é tão raro.
blogdoamstalden
5 de março de 2014
Querida Cintia. Talvez ele soubesse mesmo, ou talvez nunca tenha se encontrado direito, ´perdido’ entre dois mundos. Não sei. Tudo é realmente um mistério. Só sei que nesta vida não decifraremos nenhum, mas isto me anima, sabe? Fico esperançoso de que, talvez em outra, muito nos seja revelado. Saudades de vocês também e de conversar. Abraços ao Nelsinho e ao “Cícero, Prático e Heitor”. Bjs.
Heloisa Angeli
5 de março de 2014
Fernando
Que história mais tocante e belíssima!
Creio sim nos mistérios e são tantos… Também admiro toda metamorfose, como essa da cigarra, da borboleta e de nós mesmos quando passamos pelo processo de individuação. Sempre saímos desse processo mais iluminados e mais sábios…
Parabéns por tanta poesia permeando nossa realidade.
Grande abraço!
blogdoamstalden
9 de março de 2014
Obrigado, Heloísa. Eu nunca havia esquecido a história. E quando o Ti morreu, o texto fluiu em minha mente. Abs.
Júlio Amstalden
5 de março de 2014
Belíssimo texto! Também não acredito que a genética pode determinar a personalidade e tampouco sou reencarnacionista, mas, por já ter visitado lugares relacionados à minha própria origem, sou testemunha de que a ancestralidade fala forte e provocativamente, estremecendo o corpo e criando vínculos inesperados. Parece haver uma essência que nunca nos abandona, mesmo que muito tempo e muitos quilômetros tenham se passado. Mistérios…
blogdoamstalden
9 de março de 2014
Pode ser, meu Irmão. Mas pode ser tanta coisa. Talvez, se soubéssemos mais sobre a vida e seu final, não houvesse algum mérito em buscar viver bem, com ética. Abs.
vera helena galvão jacinto
6 de março de 2014
Linda mensagem ,linda história ,agora fiquei curiosa quero saber que dia é da cigarra,não sabia que ela vinha do besouro! Bom final de semana! vera
blogdoamstalden
9 de março de 2014
Vera, o “besouro” é uma fase intermediária da vida das cigarras. Como cigarras mesmo, voadoras, elas vivem muito pouco. Não me lembro que dia era aquele. O Ti poderia dizer que dia é o das cigarras. Mas agora ele abandonou a velha casca. Tomara esteja em uma nova e linda forma. Abs e obrigado por comentar.
Drika Komatsu
7 de março de 2014
Lindo texto……………o único com quem o Ti sempre foi grudado era com seu irmão André Komatsu. Os dois se entendiam apenas no olhar…………uma linda amizade de amor e respeito.
blogdoamstalden
9 de março de 2014
Obrigado pelo comentário, Drika. Abs.
Beatriz
7 de março de 2014
Amstalden, lindo artigo.
Conheci o Ti doente; veio do Japão cadeirante e lutou muito pela vida. Mesmo a doença se alastrando, os movimentos diminuindo, não perdia a esperança.
Tímido, adorava desenhar, seus bichinhos de pelúcia e assistir televisão, principalmente, filmes japoneses. Uma alma infantil que se encontrou no Japão. Um índio brasileiro, com sobrenome e alma japonesa.
Abraços.
blogdoamstalden
9 de março de 2014
Lindo seu comentário também, Beatriz. Seu apoio e o do Chico foram redentores neste final do trajeto do Ti. Suas palavras, agora, demonstram isto. Abraço e obrigado por comentar.
Rossana Triano
17 de abril de 2017
ô Luís.. que lindo tudo o que vc escreveu do Ti.. no dia das cigarras eu estava lá, um verdadeiro espetáculo.. no dos vaga-lumes, infelizmente perdi.. eu levei uns três anos para ganhar a confiança dele.. e ficamos amigos.. o dna indígena sempre esteve muito presente.. não o víamos passar, quando percebíamos, ele já estava voltando.. estive com ele, quando retornou doente.. e vi que o Tiriri, menino, tinha virado o Auiti adulto..muito triste a partida tão precoce dele.. me sinto privilegiada por tê-lo conhecido e conquistado sua confiança.. ríamos juntos de coisas bobas…e comemos juntos muitos doces e sorvetes.. espero que um dia nos reencontremos novamente.. um beijo pra vc..