Em texto anterior comentei que a nostalgia nutrida por saudosistas do golpe de 1964 é alimentada, dentre outros itens, por um suposto rigor da ditadura militar no tratamento da corrupção. Acreditar que não houve corrupção nos “anos de chumbo”, ou que esta era efetivamente combatida, é um sério erro de avaliação. Ainda que pretensões moralizantes conduzissem muitos daqueles que acreditavam fazer o melhor para o país ao livrá-lo do instável João Goulart via deposição forçada, a antiga cordialidade brasileira (que prefere a amizade e o parentesco em detrimento do mérito), a tradição patriarcal (liderança onipresente e inquestionável de uma pessoa sobre determinado grupo) e nossa cultura patrimonialista (forte dependência do Estado, de seus cargos e de suas vantagens) encontraram-se com o corporativismo militar do período (que, dentre outras características, considerava qualquer crítica a um membro como uma acusação direcionada a todo o grupo), gerando condições especiais para que a corrupção proliferasse. Notícias de escândalos e esquemas fraudulentos, quando driblavam a censura na ditadura, eram tachadas de “provocações” vindas de adversários ou da imprensa “não patriótica”, ou seja, “mentiras” sem nenhum crédito e sujeitas a rigorosas punições. Essas “mentiras”, porém, causaram muitos danos ao país ao longo dos 21 anos do regime militar, contribuindo para o fortalecimento do “jeitinho” brasileiro e da impunidade.
Exemplo de decepção com o regime e seu desvirtuamento moral é o depoimento do general Hugo Abreu, veterano da 2ª Guerra Mundial, entusiasta do golpe em 1964 e ministro do Gabinete Militar durante o governo de Ernesto Geisel (1974-1979). Ao deixar o cargo desalentado com a leniência com a corrupção que testemunhara, disparou: “O governo não só não as apura, como parece, mesmo, não se interessar pelas acusações, as mais graves, inclusive a envolver ministros seus. E quando age é no sentido de procurar dificultar as averiguações, tornando-se cúmplice e não juiz, como seria de esperar”. Em seu livro O Outro Lado do Poder (1979), apresentou extenso rol de negociatas envolvendo o governo e empresas ligadas a ministros ou a “amigos” do poder, como manipulação da Bolsa de Valores, subornos pagos a embaixadores, favorecimento no âmbito do Programa Nuclear Brasileiro, compra de empresa por valor maior que o real (não estamos falando da refinaria da Petrobras nos EUA, mas sim de operação com a Light), concessão de empréstimos suspeitos no BNDES e realização de obras sem o devido planejamento na Ferrovia do Aço, dentre outros casos.
Segundo o general, a maneira como o governo do austero Geisel lidava com tais denúncias resumia-se à fórmula “tentar processar quem fez a acusação”. Abreu sabia o que estava dizendo, pois já tinha sido preso por conta de suas declarações e passaria nova temporada em prisão domiciliar após a publicação de seu livro, sob a alegação de “quebra de disciplina”. As suspeitas mortes do delegado Sérgio Paranhos Fleury, ícone da violência do regime, e do jornalista Alexandre von Baumgarten, envolvido em operações com o SNI (Serviço Nacional de Informações), insinuam que o regime também avançou para além da punição disciplinar, aplicando em alguns casos uma versão da omertà, o voto de silêncio imposto pela máfia italiana que pode custar a vida de quem ouse desobedecê-lo.
Mas o desvirtuamento durante a ditadura não ocorreu apenas em esquemas milionários, sendo a prática de descolar um emprego público mais acessível a pobres mortais. O SNI, que no carnaval de 1980, segundo o jornalista Lucas Figueiredo, chegou a vigiar um bloco carnavalesco em Brasília com o objetivo de controlar marchinhas que satirizassem o presidente da República, dentre outros casos bizarros, empregava milhares de funcionários, e muitos passavam o dia ociosos em repartições públicas na função de bisbilhotar o trabalho de seus colegas. O empreguismo era tão desenfreado no período que o próprio presidente Geisel, durante reunião com o Alto-Comando Militar em 1975, cuja ata foi garimpada pelo jornalista Elio Gaspari constatou desanimado que, enquanto o Exército investia em motorização, diminuindo, portanto, a necessidade da utilização de cavalos, o quadro de médicos veterinários só aumentava: “Aí tem o lado sentimentalismo, não é? É o amigo, o companheiro, é isso, é aquilo, dá-se um jeito”.
A revista inglesa The Economist, no artigo The new age of crony capitalism, debateu no último mês os problemas causados em diversos países pelo compadrio entre grandes empresas e funcionários corruptos, demonstrando que esse desafio não é exclusivo do Brasil. Ainda que a reportagem elogie nosso país por avanços na legislação, sabemos que muito ainda deve ser feito em termos de fiscalização, investigação e punição a desvios. Se as grandes obras de ontem, assim como hoje, são fonte permanente de desperdício de recursos públicos e o nepotismo é uma sombra ainda atual, além de cobrar de políticos e dirigentes uma postura mais firme, deve o brasileiro se informar melhor e ser mais crítico quanto à presença da corrupção em nossa história, julgando os fatos da maneira que ocorreram, e não por filtros ideológicos ou mediante fórmulas toscas como o “rouba, mas faz”. Se existe colesterol bom e ruim, não dá para usar o mesmo critério com a corrupção, pois, independentemente de quem a pratique, ou qual seja sua finalidade, nenhuma corrupção é saudável para a sociedade e para o país.
Orlando Guimaro Junior é advogado com especialização em Direito Contratual (PUC/SP) e coautor do livro Piracicaba, 1964: o golpe militar no interior (no prelo).
Claudio Bini
3 de junho de 2014
Parabéns a esse grande colega e estudioso ORLANDO GUIMARO JUNIOR pela pesquisa histórica, resgatando pontos que devem ser objeto de reflexão, para que possamos entender que o que vivemos e temos HOJE nada mais é do que o fruto desse passado não tão distante assim. A corrupção sempre esteve presente na sociedade. Ora mais, ora menos, mas sempre presente. Ocorre que nossa história é “recheada” dela, desde o nascedouro do Brasil, desde o império. E atualmente, infelizmente, parece ter alcançado níveis assustadores…
Parabéns ORLANDO e seus colegas pela obra.
JRP
3 de junho de 2014
Corrupção maior que no governo do PT nunca houve na história deste país !
Antonio Carlos Danelon - Totó
5 de junho de 2014
Então você sabe bem pouco de Brasil.
Ronaldo D`Almeida Santana
19 de fevereiro de 2015
Taí cara, gostei do teu blog, principalmente quando critica o conteúdo do UOL ( sem dúvida nele representando toda a grande imprensa) e diz que “Dormir” por toda a vida pode gerar alguns sonhos, mas faz você não viver tudo o que pode. Coisas de um cara das ciências do homem. Até!!!!!!!!!!!!!!!!!