Outro dia me ocorreu novamente uma situação relativamente comum no consultório. “Doutor, fui pra São Paulo ou Campinas procurar um especialista, porque todos os daqui são péssimos. ”. Ao indagar o porquê de não procurar alguém em nossa cidade, sendo que há tantos muito competentes a resposta foi generalista, citando que os daqui são todos ruins. Discordei dizendo que conheço vários deles pessoalmente e seus currículos são difíceis de serem igualados e a resposta é a mesma: em Piracicaba não há ninguém que preste.
Na verdade ouço isso desde que nasci sendo repetido como um mantra. Quando fui à São Paulo estudar na USP, considerada a melhor faculdade de medicina do país, tive o sonho de voltar ao interior para mudar essa realidade: pensava em mudar o padrão da medicina por aqui. Minha primeira decepção foi me dar conta de que os problemas comuns por aqui também são comuns por lá, alguns majorados, outros muito majorados. Descobri que não há virtudes e mazelas em determinados lugares, elas acontecem em todos eles. Descobri também que outros lugares podem ser inclusive piores que aqui e, de fato, tendo todas as portas abertas, optei por retornar à Piracicaba, como melhor opção de vida, coisa que aliás é comum entre os piracicabanos que estudam fora.
Mais adiante cheguei a levar alguns destes pacientes exigentes para operar em São Paulo: Sírio Libanês e Oswaldo Cruz, algumas vezes. Certo dia me dei conta que não havia mais diferença objetiva. Pior, entendi que no momento em que abdicava da minha cidade para prestigiar uma outra sob a alegação de que a minha não era suficiente estava na verdade desprestigiando a mim, aos meus conterrâneos, parentes, amigos e parceiros de trabalho, enfim, a minha própria identidade. É o clássico “Complexo de Vira-lata” de Nelson Rodrigues, uma espécie de complexo de inferioridade. Posso ter perdido alguns pacientes mas, a partir desse dia, ganhei auto estima e, mais do que isso, me comprometi verdadeiramente com a minha terra, como membro da comunidade.
Interessantemente, passei a notar que é um sentimento endêmico. Como sou referência em minhas especialidades regularmente recebo pacientes das cidades menores vizinhas maldizendo seus serviços de origem, desqualificando seus profissionais. Não estou falando de um ou outro, que pode ser insuficiente mesmo, mas da generalização de que nada é bom em sua terra. Será que nada é bom mesmo? Ou será que a pessoa é bem tratada, adequadamente encaminhada e como retribuição solta uma bravata contra sua cidade de origem? Pode sim haver limitações mas será que você não foi bem tratado dentro das mesmas? O que você propõe fazer para melhorar essa realidade, se é que é possível? Se é tão ruim assim, porque você simplesmente não se muda?
Isso não é privilégio da medicina! Acontece em todas as áreas: no comércio e nos serviços em geral. No shopping em Campinas é bem melhor! Os produtos chineses comprados pela internet são mais baratos e melhores, mesmo não podendo ser trocados, vindo algumas vezes com defeitos e levando 60 dias para chegarem, não tendo certificação do Inmetro e ocasionalmente contendo metais pesados. Honestamente, você compraria um produto com essas limitações em sua cidade, mesmo sendo barato? Enxoval em Miami é tudo de bom. Ok , você paga duas passagens aéreas, perde os dois dias em viagens, aluga um carro, dirige uma a duas horas até o outlet “mais próximo”, investe um dia de férias no exterior vendo vitrines, perde de produzir aqui se for autônomo e ainda assim vale? Ah, mas na verdade você queria mesmo era ver o Mickey aos 30 anos de idade. Então esta explicado.
Muitas e muitas vezes as pessoas viajam por serviços piores que os que estão ao seu lado. Certa vez consultei vários profissionais em São Paulo sobre planejamento tributário e fui achar um escritório há duas quadras de casa que resolveu meus problemas com extrema competência. E assim com vários outros serviços. Acontece inclusive entre bairros. A pessoa reclama da mercearia ou da padaria na sua esquina, que esta lá para lhe acudir no dia a dia e sonha com o hipermercado da beira da estrada ou da região central, que simplesmente não cabem no seu bairro por motivos óbvios.
Na época do cursinho me diziam que ninguém que estudava aqui entrava em grandes universidades de medicina. Estudei e passei na época em todas elas, tendo aula com professores por quem tenho orgulho e gratidão, sendo um deles o professor Amstalden, que da nome a este blog.
Não há nada de errado em procurar serviços em outras praças porque foi bem indicado, por uma ou outra característica peculiar que lhe convém ou porque realmente ele não existe onde você mora. Entretanto, quando pensar em denegrir sua cidade, seu convívio, seu bairro, procure se questionar o que você faz por ele(a) ou mesmo pensar duas vezes, porque seu interlocutor pode lhe enxergar desprestigiando a si mesmo. Pior, você mesmo pode estar se enxergando assim.
Alexandre Pagotto Pacheco é médico ortopedista e assina esta coluna mensal.
Marlene Pitarello
26 de junho de 2014
Alexandre, ótimo seu escrito! Também penso que nós médicos temos uma vaidade e um orgulho desmedido…..assim como os artistas, os intelectuais, gente da classe AAA, etc. etc. Vejo uma necessidade sempre em denegrir o trabalho de outro colega….o outro sempre erra, sempre é pior, sempre é o errado e despreparado, etc. etc…..os médicos precisam lidar melhor com sua própria impotência diante da maioria dos casos, em que no máximo podemos aliviar, e poucas curar (talvez diferente na sua área)…..daí nos respeitaremos mais e os pacientes valorizarão mais nosso trabalho como um todo!
dralexandrepacheco
29 de junho de 2014
Concordo com você Marlene. Os médicos têm uma culpa enorme por anos de prática em denegrir os colegas para se exaltarem. Funciona do mesmo modo que o cliente denegrindo seu convívio e acabam fazendo os pacientes desconfiarem da classe como um todo e do próprio médico em questão, é o mesmo complexo. Valem para esses colegas as duas últimas frases do texto.
Carla Betta
26 de junho de 2014
Muito bom o artigo ! Eu sou de São Paulo, moro aqui e me sinto muito bem atendida em Piracicaba. Este “complexo de vira lata” já deveria ter sido extirpado.
dralexandrepacheco
29 de junho de 2014
Carla, você percebe que é o mesmo em facetas diferentes. Acima comentei com Marlene isso dentro da classe médica. Foquei nas consultas no interior porque a coluna parte de observações da minha prática médica para análises sociais, mas com atenção vamos ver isso multifacetado, inclusive em São Paulo.
Evandro Mangueira
27 de junho de 2014
O complexo vira lata é algo do brasileiro, ao dizer essa frase estou fazendo uso desse complexo.
dralexandrepacheco
29 de junho de 2014
Total acordo. Fechou!
Carla Betta
30 de junho de 2014
Dr. Alexandre, sinceramente, sinto-me melhor atendida na rede pública do interior (e já morei em outra cidade interiorana) que em São Paulo, capital. Na rede particular, ambas redes se equiparam. Não é uma pesquisa, mas diz respeito à minha vivência.
João Pagotto
23 de junho de 2017
Excelente texto ! Parabéns.