Eram dois adolescentes, ambos perto dos 14 anos. Moravam na mesma rua, estudavam na mesma classe e escola de um bairro periférico de Piracicaba. Depois das aulas passavam a tarde empinando pipas, brincando com bola ou à toa.
Havia uma oficina mecânica tipo fundo-de-quintal na mesma rua. Um deles se interessou e passou a frequentá-la. Conhecido da família do menino, o dono não se opôs. Aos poucos o adolescente se envolveu no trabalho e hoje com quase 16 anos sabe muita coisa da profissão. Pretende fazer curso de mecânica no SENAI. O outro adolescente continuou na rua. Hoje vende drogas e puxa motos roubadas para desmanche. Já foi detido e liberado; porém continua na mesma.
Se o Conselho Tutelar aparecer qual dos dois pais será advertido e qual dos dois adolescentes está protegido pela lei? Não me venham dizer que seria o primeiro adolescente e o pai do segundo.
Para os jovens das classes populares, o atual sistema de proteção mais atrapalha que ajuda. Antes havia Juizado de Menores, bicho papão das crianças e adolescentes em situação irregular. Veio ECA, Conselho da Criança e Tutelar; Vara da Infância, Lei do Aprendiz, Defensoria e Ministério Público, Conferencia e Orçamento da Criança e do Adolescente, Fóruns, CREAS, SINASE, Fundação Casa, Abrigos, Programas, Projetos, ONGs mais um monte de coisas e pergunto se a situação deles melhorou.
Para fazer ‘funcionar’ tão complicado fluxograma – pensado parece por quem entende pouco da questão – além do batalhão de funcionários indicados, concursados e contratados, há uma rede de interesses pessoais, partidários e econômicos, que vão da construção dos equipamentos à visibilidade política; manutenção e fornecimento de materiais. Quem entende do problema e conhece a saída – a família do adolescente sob risco social e ele próprio – de nada participa. Para a Justiça são réus, e de sujeitos de emancipação viram objetos na mão do poder público, que após devassar sua vida decide seu destino. Em vez de ouvidos, acabam cobrados por profissionais que nem em sonho conseguem imaginar como funciona o mundo da exclusão e suas conexões. A maioria não tem preparo, maturidade e respaldo suficientes para lidar com tantas dores. Nem se atém ao fato de que a exclusão é cria do sistema ao qual servem e resultado concreto da falta de políticas públicas. Muitos estão no serviço público à espera de algo melhor e grande parte busca estabilidade, que leva ao comodismo. Aos comprometidos restam salários ridículos, falta de estímulo e plano de carreira. O usuário já sacou a precariedade do sistema. Faz de conta que se enquadra ou desafia o ‘poder’ ou dele tira proveito.
Não sem razão. Vemos presídios e Fundação CASA cheios de jovens, abrigos lotados de crianças e idosos esperando vagas; adolescentes ‘trabalhando’ no tráfico para conseguir alguns trocados. Homicídios entre 14 e 25 anos crescem 326,1% nas últimas três décadas no país. Em Piracicaba a violência é a principal causa de mortes de jovens; no Brasil, quase 10 milhões deles não estudam e nem trabalham porque se recusam virar peças e as crianças brasileiras são as menos ativas da América Latina.
A Assistência pegou rumo errado porque não atua nas causas. Gasta mais no andaime que no prédio. Se os recursos fossem direcionados diretamente às famílias em situação de risco seguindo um plano de oportunidades pactuado e monitorado, talvez tivéssemos melhores resultados, já que na maioria dos casos é a pobreza extrema que as desagrega porque lhes tolhe o acesso à dignidade e à cidadania plena.
“Nós temos aquilo que subsidiamos. Se subsidiarmos os pobres vamos ter pobres”. (Randy Simmons. PhD em ciências políticas Universidade de Oregon. Folha 08.04.13 A 13)..
Anônimo
27 de junho de 2014
Parabéns, Totó! Perfeita reflexão.
Graça Ribeiro
27 de junho de 2014
Enquanto o mercado formal rejeita o menor aprendiz e a Lei o proíbe de trabalhar, o tráfico de drogas não tem dessas “frescuras” e arregimenta até crianças. Como a sociedade é hipócrita e os “especialistas de plantão” estão sempre dispostos a formular novas teorias e a usar os pobres como cobaias, veremos o Estado construindo presídios e Fundações Casa para abrigar os delinquentes. SE O ECA FOSSE CUMPRIDO e se a criança tivesse acesso a escola integral DE BOA QUALIDADE desde a creche, certamente a situação seria diferente. Mas optamos pela hipocrisia.
augusto sousa
27 de junho de 2014
Muito boa reflexão mesmo!
Porém, dando vazão à reflexão, vemos que os dois jovens sitados moram na mesma rua, frequentam a mesma escola. Devo concluir que estão na mesma “situação de risco”.
O que levou um deles a procurar a oficina e se interessar posteriormente pelo curso profissionalizante?. Talvez ai a chave para identificar diferentes comportamentos. Posso chamar isso de estrutura familiar antes de culpar o ” sistema”. Talvez educação de base.
Agora podemos também visualizar o cenário futuro dos dois jovens.
O mecânico ira concluir seu curso técnico, talvez com orientação, uma faculdade. Responsável como é, formará uma família e terá talvez um ou dois filhos.
Já o outro, convertido ao romantismo da vida desregrada, terá mais filhos, talvez com diferentes mães. Dentro desse universo, as chances dessas crianças serão também mínimas.
Aquele mecânico, agora melhor estruturado, cria seu filhos, os educa dentro de seus princípios e paga seus impostos, recolhe imposto de renda e outras contribuições, para prover as crianças daquele seu antigo colega de classe. E, ainda sustentar esse complicado fluxograma e batalhão de funcionários.
Evandro Mangueira
27 de junho de 2014
Confuso imaginar uma solução eficiente, creio que as leis são para regulamentar a moral e a ética, mas essas deveriam ser algo natural de uma sociedade e não o são. Sempre que penso nas leis de proteção, entro em um paradoxo o qual nunca saio, soluções difíceis para dias difíceis. Belo texto.
Antonio Carlos Danelon - Totó
30 de junho de 2014
Obrigado amigas e amigos por lerem e pela disposição em contribuir com a reflexão. É desse modo que vamos modificando conceitos e quebrando preconceitos. Creio que o Estado, mesmo tendo nada pra oferecer, está ingerindo demais na família tirando-lhe muito de sua responsabilidade. A mulher nunca esteve tão sobrecarregada e infeliz, mesmo passando aquela imagem padronizada de realização. Faz muita coisa ao mesmo tempo porque muitas dessas coisas exigem reflexo não reflexão. O homem parece cachorro que caiu da mudança. Perdeu referência e tem que ser ‘legal’ para ‘ganhar’ os filhos. Por outro lado, todo mundo exige da família, porém o Estado não a respeita e nem o sistema econômico, já que para ganhar o pão, todo o dia a família se desmancha e quando se junta à noite está em cacos.