Os alemães venceram a copa! O Brasil, se quiser, vence com eles. A seleção alemã deu um show de carisma, de organização e de treinamento. Foi bem recebida aqui e soube retribuir, fez doações de mais de 30 mil reais incluindo a compra de veículo de atendimento médico à comunidade pataxó, móveis para escola municipal de Santo André (município onde ficaram alojados, em Santa Cruz Cabrália) e bicicletas para a comunidade… Mas não comprou hotel nenhum, como está sendo veiculado em muitos posts do face. Para além desse mito do hotel, parabéns pr’os caras!
O Brasil foi “descoberto”, há mais de 500 anos em Santa Cruz Cabrália, mas divergem sobre o lugar exato, alguns historiadores. Mas é certo: se não descobertos, fomos redescobertos ali mesmo, pela Deutscher Fussball-Bund em plena copa de 2014.
Eles nos descobriram, nos puseram nus, como os índios há época dos 1500. Mostraram que as lendas como “brasileiros reis do futebol”, ou “somos os deuses da bola” estão naufragadas. Conquistas pressupõem organização, disciplina, trabalho árduo… Para além dos mitos nacionais, das “invenções de tradição” (como nos ensina Eric Hobsbawm), a sociedade precisa se construir, precisa erguer seu caráter apoiando-se no trabalho focado, apoiando-se naquilo que ela quer ser, e não nos mitos que pressupõem o que ela “pode ter sido”. A resposta vem de outro alemão, o filósofo Friedrich Nietzsche: “a história nos proporciona um voyeurismo debilitante, causando a falsa sensação de que tudo já foi feito e nada resta por fazer” (citação de cabeça, mais ou menos isso). Nietzsche não destruía os deuses da história com seu martelo trágico gratuitamente: a força do homem está para além do “conhece-te a ti mesmo”, ou seja, no “torna-te o que tu és”.
Quanto tempo um ginasta se prepara para poder participar das olimpíadas? Quanto tempo ele se prepara depois de confirmada sua participação? Há quanto tempo esta seleção alemã se prepara para essa copa do mundo? A seleção alemã vem trabalhando ao longo de 6 anos (ou um pouco mais) para chegar onde chegou. Nossa seleção – indubitavelmente talentosa, mas despreparada – treinou pouco, não tinha intimidade de equipe. A CBF não consegue (faz tempo) gestar com eficiência o futebol brasileiro. Nossa seleção foi pensada não como time, mas como um grupo articulado em torno do mito do herói: Neymar. Neutralizado o “salvador da pátria”, o time foi à bancarrota.
Nesse emblemático mito, nossa nação é, novamente, redescoberta: o Brasil quer heróis, tem sede por salvadores. Desde o mito de Cabral até a suposta redenção nacional, com as eleições para presidente. Quem dera o problema da nação fosse a Dilma e não uma política endemicamente viciada em coronelismos, em superfaturamentos, em interesses corporativos acima dos interesses da sociedade. O Felipão é a ponta do iceberg: nossa fixação com crucificação de técnicos (ironicamente sempre apelidados de “professor”) revela nossa sede por redenção, por “consolo metafísico”: numa síndrome de monarquia cósmica (onde deus brasileiro é o Rei da história) só nos resta desvelarmos pelo olhar naïf da criança (que simbolicamente chorava naquela arquibancada): “O Rei está nu!”.
É hora de percebermos quão pelada é nossa postura política diante do futebol, para que o futebol deixe de ser pelada. Num país que tanto valoriza a bola, é hora de entender que o mundo dá voltas e, tanto na história, quanto na cidadania, ou no campo: quem não faz, toma!
Admiro a cultura alemã, não pelo o que ela quis ser, em muitos momentos, mas pelo o que ela acabou se tornando. Nascida em 1871 (o país “Alemanha” é mais novo que o Brasil!) a Alemanha teve que inventar sua cultura, fundar sua nação e, no final do XIX, buscou a cultura grega como modelo: de Winckelman (historiador da arte) à Nietzsche os pensadores e poetas buscavam na tragicidade grega a serenidade diante da adversidade: é a heiterkeit o que podemos traduzir (segundo Jacó Guinsburg e Paulo César de Souza) de “serenojovialidade”. Talvez seja alucinação minha, mas a postura impassível dos jogadores e do técnico no jogo contra a Argentina, o que os brasileiros taxamos como “frieza” diante do desafio: para mim mais parece a tal da serenojovialidade.
O curioso é que para a sorte (ou azar) da Alemanha, sua história é a história trágica por excelência: massacrada pelos acordos de paz da primeira Guerra; experimentando umas das mais violentas crises econômicas com a República de Weimar (1919 – 1933); vendo nascer em seu seio a política mais abjeta da história da humanidade (o nazismo; 1938-1945) e finalmente sendo retalhada pelos blocos capitalista e socialista no período de guerra fria (1945 – 1989), a Alemanha ainda teve que abrir mão de sua poderosa moeda o marco alemão em nome de uma Europa unida, justamente tendo como mais forte aliada a França, sua inimiga histórica. A nação alemã sempre pagou caro por suas pretensões, por seus sonhos de grandeza, amargou as dores de suas megalomanias e teve que aprender a se tornar a Alemanha da tolerância, da convivência na diversidade de gênero e da cidadania para estrangeiros (os jogadores Sami Khedira, de ascendência tunisiana e Jérôme Boateng, de origem ganesa são aí, paradigmáticos).
Custou caro para o alemão voltar a cantar o hino “Deutchland über alles in der welt” (Alemanha acima de tudo no mundo): como esboçar patriotismo diante de um passado totalitário, quando a bandeira alemã estava a serviço da violência e da intolerância?
O crepúsculo de seus mitos, foi bom para a Alemanha, assim como, espero, seja bom para o Brasil. E saiu barato: o 7 x 1 no futebol é apenas da ordem do simbólico: se o símbolo quebrado ofende e por isso alerta, é chegada hora de repensarmos não apenas nossas posturas diante do futebol, mais diante da cidadania e da política (até porque, um tema não se separa do outro).
É chegada a hora de menos hino, de menos “lábaros que ostentas estrelado” a plenos pulmões, e mais ação pró-ativa na construção de uma sociedade cidadã. Legal a bandeira… mas não se trata de grandeza ou tristeza da nação e sim da construção de um lugar de cidadãos, de uma clareza política para além das torcidas organizadas de esquerda ou direita, para além dos gritos de torcida na política e ofensas ao hino dos outros (na vaia diante do hino do Chile, …foi ali que perdemos a copa!). É mister começarmos a compreender que a vitória da Alemanha foi a vitória da alegria sobre a adversidade. A vitória alemã está decalcada na persistência de Schweinsteiger, sorrindo com a taça, depois de caçado e arrebentado em campo. A polidez e a alegria da seleção alemã, tão cativante em Cabrália, é a alegria tão brasileira da qual sempre nos orgulhamos.
A vitória dos alemães foi a vitória de uma disciplina alegre, consciente de seu papel social, certa de que mais importante do que carregar a “nação que fomos” é erguer a “nação que queremos ser”. Quando Nietzsche ataca a história não é para destruir qualquer noção historiográfica, mas para que o homem se entenda sujeito de seu tempo. Logo, a história que importa é, para além do passado, a história do futuro.
A vitória da alegria alemã é a vitória da alegria tão brasileira, não nos esqueçamos disso.
E que a Alemanha também não se esqueça que sua vitória se deve ao aprendizado da tolerância, da cidadania para todos, para que o fantasma da ultra-direita (entenda-se, o nazismo) – tanto na Alemanha como em toda Europa – não apague essa serenojovialidade trágica, tão duramente conquistada.
Que a Alemanha e o Brasil optem pela beleza que emerge da tragédia, porque a história quando se repete – já diria outro alemão – infelizmente se repete como farsa.
(Para além do trágico, fiquemos com o poder catártico da comédia, no brilhante texto do Prof. Dr. Márcio Seligmann-Silva para a Folha de São Paulo: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/175483-e-de-repente-do-pranto-fez-se-o-riso.shtml)
Fábio Casemiro
Posted on 11 de agosto de 2014 por blogdoamstalden
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