Coluna da Carla. Homens sem sombra. Por Carla Betta

Posted on 25 de agosto de 2014 por

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esmola

Certa noite, voltando para casa, entra no ônibus um senhor que parecia estar embriagado, com os olhos vermelhos e pedindo um real para comprar pão (“pelo amor de Deus”) para seus cinco filhos famintos em casa. Posso estar equivocada em meu julgamento, mas a função da esmola não era esta. Atrás de mim, senhoras cochichavam condenando-o e duvidando de suas intenções com ressentido e hostil tom em suas vozes sussurradas. U’a moeda cai e outro senhor ajuda o pedinte a recuperá-la.

É uma cena comum. Fiquei pensando nos mendigos que percorreram meu caminho. Desde o temido “homem-do-saco” da minha infância, pobres coitados, sujos, de cabelos desgrenhados, barbas embaraçadas e vestimentas rotas que carregavam um grande saco de estopa às suas costas, provavelmente com todos os seus pertences, mas com o qual amedrontava-se as crianças dizendo que dentro do saco o pobre homem carregava crianças por ele sequestradas e maltratadas. “Não vai para a rua” ou “Não saia de perto” porque “se não o homem-do-saco te pega, hein?” Tão mal e poderoso era o tal homem que todos o temiam e não o denunciavam! ….

Cresci apavorada com qualquer mendigo. Depois, passei a ter nojo deles e ainda assim o sinto, confesso envergonhadamente.

Em todas as cenas já vividas com moradores de rua malvestidos, duas coisas chamam a minha atenção: a sujeira deles e a nossa indiferença. Sempre me incomodou (e incomoda) que os mendigos (com raras exceções) não se importam em viverem imundos e em não tomarem banho. Mas, será mesmo que não se importam? Nunca lhes dirigi palavra, que dizer de uma pergunta toda? E aí vem a segunda coisa que salta aos meus olhos: nosso desprezo.

Vivemos, agimos, andamos, convivemos como se eles não existissem. Gostaríamos que todos ficassem isolados em algum lugar distante. Que não maculassem a paisagem, a cidade, o nosso olhar. E embora não estejam segregados a um espaço físico, estão enjaulados pelo nosso desdém. Parecem-nos invisíveis, estes seres humanos como qualquer um de nós.

(E a gente bate no peito e diz que é cristão)

A cena mais impressionante gravada em minhas retinas da alma deu-se em Santos. Em um daqueles quiosques de sorvetes instantâneos, cujo atendimento dá-se na rua, havia uma fila enorme, mas eu quero dizer, enorme mesmo. Encostados à parede vizinha ao quiosque, dois moleques, aparentando uns dez anos, desses de calção, chinelos-de-dedo, e cabelos despenteados viam a grande fila, mas seus olhares concentravam-se nas crianças e adultos que saíam lambendo seus sorvetes. Todos se portavam como se eles fossem estátuas ou inexistentes, como se só houvesse parede e ninguém.

Quando chegou a nossa vez, eu chamei os moleques e eles escolheram o sabor que desejavam. Saíram alegres (“Obrigado, tia”) e atendente reclamou (Eles ficam aí o dia todo até ganharem sorvete). Não entendi o tom queixoso.

Jung disse algo como: quanto menos conhecemos a nossa sombra (nossos defeitos, nosso “lado feio”, digamos assim) maior ela é e mais poder tem sobre nós.

Se, logicamente, encarar a nossa sombra, tanto individual quanto socialmente, promoveria maior libertação de nós mesmos, maior integração de nossas facetas individuais e sociais, promoveria crescimento e desenvolvimento, por que colocamo-nos cabrestos e somos, como disse Jesus, cegos guiando cegos?

Amstalden contou-nos em seu artigo neste mesmo blog: “Nós e os mendigos” da experiência de uma pessoa em Florianópolis que fez se passar por morador de rua, sendo desprezado e maltratado e tornou-se invisível. Há também, sabidamente, um pesquisador da USP que passou-se por faxineiro nesta instituição e sequer seus colegas o reconheceram.

Que invisibilidade é esta? Quanta dificuldade temos em enfrentar nossas mazelas pessoais, nossos sentimentos considerados repreensíveis, nossos comportamentos inadequados na mesma proporção (penso eu) que não encaramos as mazelas sociais.

Seria a cultivada necessidade pela lógica de agradar? Como nos é ensinado desde tenra idade: temos que ser “bonzinhos” para papai, mamãe, titio, titia… professores, diretora… “legais” e “enturmados” com nossos companheiros e assim por diante em progressão geométrica avassaladora de nossos “eu-verdadeiro”, de nossas vontades genuínas; o que nos faz camuflar nossa sombra?

Seria o complexo-de-culpa perante nossos irmãos menos afortunados? Se não somos criados na religião católica, carregamos os ranços dela advindos, por exemplo, a culpa. Já nascemos culpados, “cheios” do pecado original que o batismo afasta momentaneamente, mas que Jesus crucificado reforça, pois Ele morreu em atroz sofrimento para nos salvar. Quer carga emocional mais pesada que esta? Cantávamos este refrão de certa melodia, a qual desconheço a autoria, quando eu ainda frequentava a igreja católica:

“…

Como posso ser feliz? Como posso ser feliz? Se ao pobre meu irmão, eu fechei meu coração e os meus braços eu cruzei?

…”

E o que fazemos dessa culpa? (Remorso, arrependimento e culpa são sentimentos bem diferentes, mas não me estenderei sobre este tema agora). Varremos a sujeira para debaixo do tapete? Ou, caprichosamente, a limpamos? Como cavalos com cabrestos tornamo-la fora de nossas vistas?

Será que não é possível nos compadecermos? Termos empatia? Pensamos em soluções verdadeiras? Enxergamos, com os olhos da alma, que aqueles seres humanos, tão à flor da pele como nós, são tão sensíveis, sentem, agem e pensam como nós! Como lhes somos tão indiferentes? Como?

Para os poderosos, os economicamente privilegiados eles são massa-de-manobra e mão-de-obra barata. Mas… e para nós? (Razoavelmente formados, classe média)

Projetamos nesses seres que a nossa cegueira invisibiliza o nosso lado escuro? Designamos: “Eles são feios”; então eu não o sou. “Eles são incorretos”; então, eu estou super certa/o.

Ao aceitarmos as nossas imperfeições, que, por vezes, somos inadequados, ao assumirmos nossa sombra tiramos-lhe este poder de enviesar nossos sentimentos e ações; levantamos o véu que obnubila a percepção do outro e podemos ter respeito, empatia e compaixão.

Madre Teresa de Calcutá dizia algo como ser a pior das pobrezas não a das necessidades materiais, mas a da carência afetiva. Ela ofertava o pão e o carinho; o cobertor e o cuidado; o alimento do corpo e da alma.

Na coleção “O sítio do pica-pau amarelo” de Monteiro Lobato há uma passagem lida e jamais esquecida.

Nos campeonatos, talvez olimpíadas (a memória me falha) entre Atenas e Esparta, estando as arquibancadas divididas entre as duas cidades, um senhor em sua terceira-idade passa por toda arquibancada ateniense sem encontrar um lugar sequer para sentar-se. Ao dirigir-se para a ala espartana, alguém lhe cede assento. Todos o aplaudem. Ele, então, vira-se para os rivais e lhes diz: “-Sabem, mas não fazem” .

Assisti na televisão um filme sobre um cientista que se torna invisível por conta de uma pesquisa (não é o herói conhecido como “homem invisível) e paralelamente aos efeitos de ser imperceptivel, transforma-se em uma pessoa agressiva e, ao final, homicida. O nome do filme? “Homem Sem Sombra”.

Nascida com o nome Carla Ramos Bettarello, adota o Betta e assume-se como Carla Betta, pela invenção de um amigo. Mais tarde, descobre que seu pai era conhecido assim em seu tempo de faculdade. Mãe coruja assumida de um casal maravilhoso e lindo de filhos. Conta e se encanta com as histórias: objeto de estudo e prática artística.

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