Certa noite, voltando para casa, entra no ônibus um senhor que parecia estar embriagado, com os olhos vermelhos e pedindo um real para comprar pão (“pelo amor de Deus”) para seus cinco filhos famintos em casa. Posso estar equivocada em meu julgamento, mas a função da esmola não era esta. Atrás de mim, senhoras cochichavam condenando-o e duvidando de suas intenções com ressentido e hostil tom em suas vozes sussurradas. U’a moeda cai e outro senhor ajuda o pedinte a recuperá-la.
É uma cena comum. Fiquei pensando nos mendigos que percorreram meu caminho. Desde o temido “homem-do-saco” da minha infância, pobres coitados, sujos, de cabelos desgrenhados, barbas embaraçadas e vestimentas rotas que carregavam um grande saco de estopa às suas costas, provavelmente com todos os seus pertences, mas com o qual amedrontava-se as crianças dizendo que dentro do saco o pobre homem carregava crianças por ele sequestradas e maltratadas. “Não vai para a rua” ou “Não saia de perto” porque “se não o homem-do-saco te pega, hein?” Tão mal e poderoso era o tal homem que todos o temiam e não o denunciavam! ….
Cresci apavorada com qualquer mendigo. Depois, passei a ter nojo deles e ainda assim o sinto, confesso envergonhadamente.
Em todas as cenas já vividas com moradores de rua malvestidos, duas coisas chamam a minha atenção: a sujeira deles e a nossa indiferença. Sempre me incomodou (e incomoda) que os mendigos (com raras exceções) não se importam em viverem imundos e em não tomarem banho. Mas, será mesmo que não se importam? Nunca lhes dirigi palavra, que dizer de uma pergunta toda? E aí vem a segunda coisa que salta aos meus olhos: nosso desprezo.
Vivemos, agimos, andamos, convivemos como se eles não existissem. Gostaríamos que todos ficassem isolados em algum lugar distante. Que não maculassem a paisagem, a cidade, o nosso olhar. E embora não estejam segregados a um espaço físico, estão enjaulados pelo nosso desdém. Parecem-nos invisíveis, estes seres humanos como qualquer um de nós.
(E a gente bate no peito e diz que é cristão)
A cena mais impressionante gravada em minhas retinas da alma deu-se em Santos. Em um daqueles quiosques de sorvetes instantâneos, cujo atendimento dá-se na rua, havia uma fila enorme, mas eu quero dizer, enorme mesmo. Encostados à parede vizinha ao quiosque, dois moleques, aparentando uns dez anos, desses de calção, chinelos-de-dedo, e cabelos despenteados viam a grande fila, mas seus olhares concentravam-se nas crianças e adultos que saíam lambendo seus sorvetes. Todos se portavam como se eles fossem estátuas ou inexistentes, como se só houvesse parede e ninguém.
Quando chegou a nossa vez, eu chamei os moleques e eles escolheram o sabor que desejavam. Saíram alegres (“Obrigado, tia”) e atendente reclamou (Eles ficam aí o dia todo até ganharem sorvete). Não entendi o tom queixoso.
Jung disse algo como: quanto menos conhecemos a nossa sombra (nossos defeitos, nosso “lado feio”, digamos assim) maior ela é e mais poder tem sobre nós.
Se, logicamente, encarar a nossa sombra, tanto individual quanto socialmente, promoveria maior libertação de nós mesmos, maior integração de nossas facetas individuais e sociais, promoveria crescimento e desenvolvimento, por que colocamo-nos cabrestos e somos, como disse Jesus, cegos guiando cegos?
Amstalden contou-nos em seu artigo neste mesmo blog: “Nós e os mendigos” da experiência de uma pessoa em Florianópolis que fez se passar por morador de rua, sendo desprezado e maltratado e tornou-se invisível. Há também, sabidamente, um pesquisador da USP que passou-se por faxineiro nesta instituição e sequer seus colegas o reconheceram.
Que invisibilidade é esta? Quanta dificuldade temos em enfrentar nossas mazelas pessoais, nossos sentimentos considerados repreensíveis, nossos comportamentos inadequados na mesma proporção (penso eu) que não encaramos as mazelas sociais.
Seria a cultivada necessidade pela lógica de agradar? Como nos é ensinado desde tenra idade: temos que ser “bonzinhos” para papai, mamãe, titio, titia… professores, diretora… “legais” e “enturmados” com nossos companheiros e assim por diante em progressão geométrica avassaladora de nossos “eu-verdadeiro”, de nossas vontades genuínas; o que nos faz camuflar nossa sombra?
Seria o complexo-de-culpa perante nossos irmãos menos afortunados? Se não somos criados na religião católica, carregamos os ranços dela advindos, por exemplo, a culpa. Já nascemos culpados, “cheios” do pecado original que o batismo afasta momentaneamente, mas que Jesus crucificado reforça, pois Ele morreu em atroz sofrimento para nos salvar. Quer carga emocional mais pesada que esta? Cantávamos este refrão de certa melodia, a qual desconheço a autoria, quando eu ainda frequentava a igreja católica:
“…
Como posso ser feliz? Como posso ser feliz? Se ao pobre meu irmão, eu fechei meu coração e os meus braços eu cruzei?
…”
E o que fazemos dessa culpa? (Remorso, arrependimento e culpa são sentimentos bem diferentes, mas não me estenderei sobre este tema agora). Varremos a sujeira para debaixo do tapete? Ou, caprichosamente, a limpamos? Como cavalos com cabrestos tornamo-la fora de nossas vistas?
Será que não é possível nos compadecermos? Termos empatia? Pensamos em soluções verdadeiras? Enxergamos, com os olhos da alma, que aqueles seres humanos, tão à flor da pele como nós, são tão sensíveis, sentem, agem e pensam como nós! Como lhes somos tão indiferentes? Como?
Para os poderosos, os economicamente privilegiados eles são massa-de-manobra e mão-de-obra barata. Mas… e para nós? (Razoavelmente formados, classe média)
Projetamos nesses seres que a nossa cegueira invisibiliza o nosso lado escuro? Designamos: “Eles são feios”; então eu não o sou. “Eles são incorretos”; então, eu estou super certa/o.
Ao aceitarmos as nossas imperfeições, que, por vezes, somos inadequados, ao assumirmos nossa sombra tiramos-lhe este poder de enviesar nossos sentimentos e ações; levantamos o véu que obnubila a percepção do outro e podemos ter respeito, empatia e compaixão.
Madre Teresa de Calcutá dizia algo como ser a pior das pobrezas não a das necessidades materiais, mas a da carência afetiva. Ela ofertava o pão e o carinho; o cobertor e o cuidado; o alimento do corpo e da alma.
Na coleção “O sítio do pica-pau amarelo” de Monteiro Lobato há uma passagem lida e jamais esquecida.
Nos campeonatos, talvez olimpíadas (a memória me falha) entre Atenas e Esparta, estando as arquibancadas divididas entre as duas cidades, um senhor em sua terceira-idade passa por toda arquibancada ateniense sem encontrar um lugar sequer para sentar-se. Ao dirigir-se para a ala espartana, alguém lhe cede assento. Todos o aplaudem. Ele, então, vira-se para os rivais e lhes diz: “-Sabem, mas não fazem” .
Assisti na televisão um filme sobre um cientista que se torna invisível por conta de uma pesquisa (não é o herói conhecido como “homem invisível) e paralelamente aos efeitos de ser imperceptivel, transforma-se em uma pessoa agressiva e, ao final, homicida. O nome do filme? “Homem Sem Sombra”.
Nascida com o nome Carla Ramos Bettarello, adota o Betta e assume-se como Carla Betta, pela invenção de um amigo. Mais tarde, descobre que seu pai era conhecido assim em seu tempo de faculdade. Mãe coruja assumida de um casal maravilhoso e lindo de filhos. Conta e se encanta com as histórias: objeto de estudo e prática artística.
Evandro Mangueira
25 de agosto de 2014
Existe um estudo chamado Vale da Estranheza. De forma bem simplista, consta que existe uma vale da estranheza no momento que a aparência de algo ou alguém se aproxima do que consideramos normal e aceitável. O que se parece com humanos (ex: animais fazendo coisas humanas, como andar de bicicleta e etc) passam a nos agradar, pois trazem a lembrança do que somos, mas quando se aproxima do nosso padrão de aceitação, passamos a repudiar. Exemplo de pessoas com deformidade no rosto ou mendigos, caem nesse vale da estranheza, passamos a ver esses como humanos, mas não humanos que gostaríamos que fossemos e imediatamente não queremos reconhecer os padrões. Por isso atitudes como o do sorveteiro, ou tantos outros que negam a humanidade existente nesses seres. Espero ter explicado bem essa teoria, mas ela serve para enquadrar diversos comportamentos humanos.
Evandro Mangueira
25 de agosto de 2014
Recomento uma sapeada no google e ler melhor a respeito do vale da estranheza.
Carla Betta
25 de agosto de 2014
Grata pela contribuição, Evandro! Vou pesquisar.
Carla Betta
25 de agosto de 2014
“O vale da estranheza (em inglês: uncanny valley) é uma hipótese no campo da robótica e da animação 3D que diz que quando réplicas humanas se comportam de forma muito parecida — mas não idêntica — a seres humanos reais, elas provocam repulsa entre observadores humanos. O “vale” em questão advém de um gŕafico da reação positiva de um ser humano em função da verossimilhança de um robô. A expressão foi introduzida pelo professor japonês de robótica Masahiro Mori em 1970, sob o título Bukimi no Tani Genshō (em japonês: 不気味の谷現象).
A hipótese original de Mori diz que, à medida em que a aparência do robô vai ficando mais humana, a resposta emocional do observador humano em relação ao robô vai se tornando mais positiva e empática, até um dado ponto onde a resposta rapidamente se torna uma forte repulsa. Entretanto, à medida em que a aparência continua a ser menos distinguível de um ser humano, a resposta emocional passa a ser positiva novamente e finalmente aproxima-se do nível de empatia entre dois humanos reais.”
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vale_da_estranheza
Li alguns textos em pesquisa feita no Google e a Wikipédia resumiu o conceito.
Antonio Carlos Danelon - Totó
26 de agosto de 2014
Amarga, porém profunda reflexão. Fomos condicionados ao padrão. Quando alguém o recusa, achamos que é louco.