O som e o sacrifício. Por Luis Fernando Amstalden

Posted on 26 de agosto de 2014 por

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Geralmente o som é tão alto que as janelas do apartamento vibram. Na verdade são portas de vidro que dão para a sacada e é possível ouvir literalmente o zumbido da vibração delas se me aproximo. A “música” é repetitiva. Em um ano, ouvi o dia inteiro os “versos refinados”, cantados por diferentes grupos, de “créééu”, “vamo s´imbora pro bar” e outras pérolas da arte. Mas mesmo quando a música merece este nome, cansa, irrita e desgasta. Não há onde se refugiar, não se consegue dormir, ler, trabalhar ou assistir televisão. Sim, procuro não prestar atenção, me desligar do som, mas quem está ou esteve submetido a um ambiente de barulho intenso sabe que isso é difícil. Quando me percebo, estou cansado, irritado, com dificuldades de fazer as tarefas mais simples. Eu tento não ouvir, mas o som está à minha volta e entra em minha cabeça. Quando é possível, tampo os ouvidos com protetores de espuma. Mas se levanto cedo no dia seguinte não há como. Se tampar os ouvidos não ouço o despertador e acabo me atrasando.

Entrar na sala de aula as sete da manhã significa acordar no mínimo as seis. Mas quando há “festa” não durmo antes que acabe. Isso pode significar meia noite, uma ou até três da manhã. Na “virada cultural” não há limite. Já ouvi rock pesado iniciando as três da madrugada. O palco geralmente fica voltado para a margem esquerda do rio, enviando o som, já alto, em direção ao centro. Como se não bastasse, a formação geográfica, com barrancos mais altos na margem direita, dá um efeito de “concha acústica” e posso distinguir cada palavra falada, “cantada” ou berrada do palco. Some-se a isso os inúmeros carros que descem a rua procurando vaga perto do Engenho. Muitos já vêm “turbinados” com música alta em seus amplificadores, outros insistem em buzinar, seja a hora que for, na vã esperança de que o trânsito flua mais fácil. Acabou? Não, não acabou. Na Festa das Nações as ruas do entorno são “privatizadas” como estacionamentos. “Flanelinhas” oficiais ou não viram “donos arrogantes do espaço”. Uma vez, indo trabalhar (leciono a noite também), entrei em uma rua para chegar ao trabalho e fui parado após ter entrado na área “restrita”. O “funcionário” do alto de seu alvará e da boa causa da obra, queria que eu pagasse o estacionamento. Tive que ameaçar chamar a polícia para sair dali, já que o distinto cidadão não aceitava que eu estava trafegando e pegara aquela via por ser saída de minha casa. A ameaça funcionou, mas se eu tivesse chamado, nada teria acontecido. Ninguém desafia as festas, mesmo quando elas cometem ilegalidades, até porque elas são por “boas causas” e pela “diversão”, além de gerarem muito dinheiro.

Tenho todo respeito pelos muitos voluntários de verdade que atuam nas festas e também pelas causas. Mas é justo que a caridade seja feita às custas do incômodo e do sacrifício alheio? Do sacrifício daqueles que estão doentes, cansados ou com crianças pequenas em casa? Aliás, todos os eventos de som alto são de caridade? Os shows de Ivete Sangalo no Engenho foram “caridade”? Me perdoem, mas não é justo, tampouco legal. A lei garante o direito de alguém dormir e descansar em sua casa, limita os níveis de ruído e o horário em que pode ser feito o barulho. Mas a lei tem sido “flexibilizada” pelos “alvarás” e o direito de muitos tem sido ignorado pela “nobreza turístico benemerente” dos eventos. Tanto é assim, que até agora nunca havia visto um político questionar os eventos. Vi pela primeira vez na pessoa do vereador Paulo Camolesi na semana passada. Paulo me alegra com sua coerência e sua coragem, mas aborrece a muitos exatamente pelos mesmos motivos.

Note-se que Camolesi não está pedindo o fim das festas, está pedindo pela sua realocação em lugar mais próprio. Ele tem razão e está pensando, como verdadeiro homem público, no bem de todos. Infelizmente, porém, acredito que será ignorado e as festas mantidas no Engenho Central. Camolesi tem sido sistematicamente boicotado desde que assumiu abrindo mão do polêmico aumento dos vereadores. Tudo o que ele propõe é visto com reserva, uma vez que ele “ameaçou” o status quo confortável de alguns. Além disso, os “donos das festas” vão lutar para ficar lá, inclusive alguns que são políticos e as tem como moeda de troca. Por último, as festas vão ficar porque a maioria que as frequenta não mora perto e não parou para pensar naqueles que moram. E mesmo que parassem para fazê-lo, acho que não se importariam mesmo. Respeito pelo outro não é uma característica de uma país sem sentido de cidadania

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