No dia 27 de fevereiro passado, em Santo André –SP, o estudante Eduardo Baionne participava de uma festa de república de alunos da UFABC (Universidade Federal do ABC) quando decidiu sair para urinar no portão da casa de Ítalo Paschoalini, de 82 anos. O idoso teria se irritado e discutido com o estudante que continuou a urinar apesar das reclamações. Ítalo alega ter pego uma mangueira de água e molhado Baionne e que este o teria imobilizado com uma “gravata” e depois desferido socos contra o dono da casa. O estudante alega ter sido também agredido e não ter socado, mas empurrado o idoso. Alega ainda ter se arrependido e tentado ajudar Ítalo, o que este nega.
Os detalhes, é claro, precisam ser apurados, mas de antemão digo que é estranho um homem de 82 anos, desarmado, conseguir agredir um jovem de 19 a ponto de provocar uma reação tão forte do “agredido”. Também não me convence o fato de que teria sido “somente” um empurrão dado pelo estudante, até porque, os olhos roxos do aposentado parecem ter sido provocados por socos na face, sem contar, é claro, os pontos na cabeça que foram necessários. Por último, Baionne estava errado. Ao ser repreendido pelo dono da casa, não deveria ter discutido e sim subido a braguilha e pedido desculpas. Porém, malgrado meus “estranhamentos”, que eu adoraria ver esclarecidos pela Justiça (a esperança é uma característica minha…), e todos as demais análises e comentários que o fato provoca, uma parte das declarações do pai de Baionne me chamou mais a atenção.
O Sr. Rogério Baionne, saiu em defesa do filho. Disse que “ambos erraram” porque o idoso também “agrediu” e que a família e o filho vêm sofrendo ameaças e que “estão acabando com a vida do filho”. Pais defenderem a prole é normal, embora eu pense que em muitos casos eles deveriam ser os primeiros a punir os filhos, até para protege-los. Se Rogério Baionne tivesse levado o filho à casa do idoso e pedido desculpas assim como tentado reparar o dano, talvez não houvessem ameaças agora. O fato marcante, pelo menos para mim, no entanto, é a declaração final de Rogério Baionne sobre seu filho, publicada no Diário do Grande ABC no dia 03/03/15: Rogério afirmou, dentre outras coisas, que: “As pessoas, nessas horas, nem se lembram de que ele é estudante de uma universidade federal e que se dedicou bastante para estar lá.”.
A questão é: o que raios ser estudante de uma universidade federal tem a ver com o fato? No que isso justifica, ameniza ou até esclarece algo? Com ou sem esforço para entrar na universidade, no que isso se relaciona com o caso? Por um acaso o registro da matrícula é um atestado de idoneidade ou santidade?
A declaração de Rogério Baionne reproduz, na verdade, um estereótipo. O de que os alunos universitários, principalmente os das universidades públicas, são uma elite e, como tal, tem privilégios. Esta é uma visão antiga, do tempo do Império, no qual somente a elite econômica tinha condições de estudar. Reproduz nossa desigualdade, nossos “homens bons” versus o populacho. Eu fiz todos meus estudos superiores na UNICAMP e tenho orgulho disso. Mas mesmo enquanto aluno (e agora mais ainda) eu tinha consciência de que eu era um privilegiado, não uma elite. Eu estudava em uma instituição paga por milhões de paulistas que nunca poriam os pés lá. Para mim na época, assim como para meu círculo de amigos, nós tínhamos (e temos) uma dívida para com aqueles que nos custearam pelos impostos. Uma dívida que devemos pagar produzindo algo de bom, agindo de forma correta, ajudando a promover aqueles que se sacrificaram para nos custear sem nos conhecer. Ainda procuro “pagar” parte desta dívida, tanto profissionalmente quanto no meu comportamento pessoal.
Sr. Rogério Baionne, seu filho teve mérito sim ao passar em um vestibular. Ao ter estudado para isso. Mas este mérito não é só dele, é de todos que custeiam o estudo que ele vai ter. Dentre estes milhões, está o Sr. Ítalo Paschoalini, que paga impostos por cada grão de arroz que come. Seu filho, Sr. Baionne, deveria ter respeitado isso e não ido urinar na casa de quem ajuda a custeá-lo, deveria ter respeitado isso não agredindo um homem mais fraco. Deveria honrar a cidadania e não ofendê-la.
Se você é, foi ou quer ser estudante universitário, principalmente de uma universidade pública, lembre-se de que por mais que tenha estudado, sofrido e se esforçado, você não mantém toda a estrutura da universidade. Você deve a seus pais, claro, que o custearam, mas também aos pobres que pagam sua instituição e não tem acesso a ela. Você deve a todos eles e como você vai amortizar esta dívida, se com humildade ou arrogância, é que vai definir realmente quem você é: uma pessoa honrada ou um canalha…
PS: Tenho quase certeza de que o advogado do estudante vai alegar o fato dele estudar na UFABC para “provar” seu bom caráter, apoiando-se no estereótipo elitista. Querem apostar?
http://www.dgabc.com.br/Noticia/1246089/idoso-de-82-anos-e-agredido-por-estudante-universitario
Anônimo
11 de março de 2015
Adianta ter se esforçado para estudar em uma universidade pública, se não sabe nada sobre ética, moral e não tem caráter?
Daisy Costa
11 de março de 2015
sua fala ‘ver esclarecidos pela Justiça (a esperança é uma característica minha…)’ é ótima! Se esse mísero estudante fosse preto e pobre, o camburão já o teria levado, sem questionamentos… e a sociedade… ah! a sociedade iria aplaudir e não proteger, como vemos hj!
Lídia Camargo
11 de março de 2015
há muito tempo me incomoda essa perspectiva que coloca os alunos de universidades públicas numa suposta elite intelectual e moral. Que pertencem a elite sócio-econômica do país, em sua maioria, não tenho dúvidas. Programas atuais tentam desconstruir esse quadro, dando maior espaço aos candidatos vindos de escolas públicas, mesmo assim, a realidade é que entra quem tem mais “conteúdo” e é exatamente nesse ponto que começo me questionar sobre o que tem a ver esse “conteúdo” cobrado em vestibulares com a verdadeira intelectualidade a qual pode e deve atingir o ser humano. No séculos passados, podemos até dizer que ser da elite correspondia a detenção de bens culturais elevados, já que a elite burguesa, invejosa da cultura nobre, procurava cultivar o apreço e a fruição pelas produções artísticas de qualidade. Hoje, essa elite que temos no Brasil, não valoriza outra coisa que não seja a cultura de massa. O sertanejo “universitário” está ai para comprovar isso. Festas do meio acadêmico são amplamente conhecidas por seus excessos em drogas e bebidas, por suas atrações musicais saídas diretamente do lodo da cultura de massa e pela futilidade das relações. O jovem que passou no vestibular e parece, por isso, ganhar um atestado de gênio é o mesmo que não tem qualquer senso crítico para analisar seu contexto, para preservar valores éticos importantes (como visto no caso citado), ou apreciar bens culturais de qualidade. É o jovem que chafurda no senso comum tanto quanto qualquer outro que teve menores oportunidades de estudo, isso porque vestibulares não cobram criatividade, senso crítico ou cultura. Como professora de Literatura (e ex-aluna sua, não sei se lembra), vejo o quanto as obras literárias são reduzidas a esquemas, o quanto forçam as aulas de literatura se voltarem a trabalhar, antes da fruição, pegadinhas do enredo que nada atestam da capacidade leitora e intelectual do indivíduo.
Existem sim, muitos universitários que fogem a essa mediocridade da massa, mas não estão somente no ensino público. O que quero dizer é que, muitas vezes, o único atestado que se ganha ao entrar em uma universidade pública é o da arrogância. Arrogância que só é sustentada por aqueles sem o mínimo senso crítico para analisar sua própria situação e seu próprio conhecimento.
Guilherme Domingues Lima
17 de março de 2015
Muito bom, Lídia. Terminei meu Ensino Médio a pouco tempo e desde então tenho me questionado a respeito do modelo de educação que tenho visto. Estudantes estão centrados em adquirir conteúdos para passar no vestibular e muita coisa importante, que nos levaria a um crescimento humano maior, ficam de lado. Como consequência, temos fatos como esse do texto do professor Amstalden. Seu texto elucidou muito dos questionamentos que tenho levantado.
matheus
11 de março de 2015
Daisy como que a sociedade está protegendo ele se ele está sofrendo AMEAÇAS? Não faz sentido. Aliás, só vi comentários do tipo “tem que pagar pelo que fez”. Pode por favor mostrar como ele está sendo protegido pela sociedade? Se o agressor fosse preto e pobre seria errado prender ele então?
matheus
11 de março de 2015
Lídia, então você fala que os universitários são arrogantes, e em seguida taxa a cultura de massa como ruim? É o cúmulo da arrogância isso… Então um doutorando não pode ouvir sertanejo universitário? Funk é lodo? Desculpe, mas não existem argumentos nesse mundo que possam quantificar cultura. Cultura não é só algo que você gosta, ou que seu professor manda ler.
Lídia Camargo
11 de março de 2015
bom, se você acha que todos os bens culturais têm a mesma qualidade, de fato, não há como argumentar com você, pois é evidente que jamais estudou qualquer objeto artístico. Arrogante é falar de algo que desconhece, dedico minha existência a estudar objetos artísticos, principalmente a Literatura, e teria o maior prazer em lhe mostrar exatamente por que podemos classificar um objeto como tendo qualidade poética e outro não. Quando falamos de arte, não falamos de gosto, esse erro grosseiro é comum em quem não estuda isso e acha que tudo é a mesma coisa e tem o mesmo valor, desde que se goste. Por isso existe a escola, para esclarecer e estimular a fruição dos objetos artísticos que quebram com o clichê e com o senso comum, estimulando assim a criatividade de quem o aprecia. Eu sou profissional, não ensino o que gosto, seu comentário está cheio de “interpretações” do que eu não disse, por isso é difícil debatermos o assunto.
Maxx Zendag
13 de março de 2015
Taxar a cultura de massa como ruim é arrogância? Será que não há o senso comum de que “funk é lodo”? (e é lodo, sim!). Definitivamente, cultura de massa e CULTURA, ENQUANTO CONHECIMENTO, são coisas bem distintas, posso parecer retrógrado, mas é no mínimo contraditório a ideia de existir um gênero que leva o nome de “sertanejo universitário”, que apenas empobreceu o gênero sertanejo e nada tem de universitário (pelo menos no nível cultural). Cultura não é só algo que se gosta, mas há sim uma grande diferença CULTURAL entre samba raiz (do qual eu também particularmente não gosto) e funk.
Não creio que o “pobre universitário” agressor esteja protegido pela sociedade – e nem deveria – mas sim pela própria elite e, por que não dizer, pela justiça, afinal sabemos dos direitos diferenciados que os réus de nível universitário detém quando condenados. Algo que considero um absurdo.
Não digo que se “o agressor fosse preto e pobre” seria errado prendê-lo. Mas deveria ser o inverso. Alguém que possui maior poder aquisitivo e, sobretudo, maior conhecimento (nível de escolaridade), deveria, sim, receber punições ainda mais severas, pois teoricamente possui maior poder de discernimento, e principalmente porque teve melhores oportunidades na vida. Tal indivíduo tem uma obrigação ainda maior com a cidadania. Não que os desfavorecidos socialmente não a tenham, mas é plausível que quem vive em situações de risco (fome, drogas, violência) acaba por estar mais propenso a seguir por vias erradas.
Trabalho em uma instituição de ensino, e em hipótese alguma eu vi a necessidade de tratar de forma diferenciada um professor e uma auxiliar de limpeza. Tenho profundo respeito por todos, em especial aos que me respeitam. Por essa razão vejo como absurda a ideia se uma pessoa com nível de ensino superior ser considerada como parte de uma “elite”.
No comentário de outro artigo, cheguei a entrar nessa questão. mas não no sentido de considerar os mais “escolarizados” como uma elite. Penso, sim, que o país está como está porque a maioria da população tem um nível de escolaridade baixo, sem considerar a parca qualidade do ensino público, e por consequência essas pessoas são menos (ou quase nada) informadas, o que justifica o circo que virou nosso governo.
Reitero, aqui, que não afirmei que, um indivíduo que vive em situações de risco tem seus argumentos para ceder à criminalidade e à violência. E nem vou entrar no mérito dessa discussão do “preto e pobre”, pois sou expressamente contra qualquer ação que seja pautada pela raça ou cor da pele. Só penso que o jovem universitário tem uma obrigação maior com a sociedade, pois meios não lhe faltaram para tal.
Sim, o que mais se vê são comentários do tipo “el tem que pagar pelo que fez”. Sim, tem que pagar mesmo, e vou além: espero sinceramente que a justiça seja ímpar e impiedosa em punir essa atitude covarde, tão covarde quanto os trotes violentos que ainda persistem nos dias de hoje.
Carla Betta
11 de março de 2015
Lídia: faço minhas as suas palavras.
Matheus, gostaria de respondê-lo, mas se o vc deseja mesmo uma resposta ou se vc está contra argumentando, desculpe, não consegui perceber suas intenções. Se vc está apenas perguntando, eu estou apenas tentando responder:
A sociedade protege o rapaz, para começar, porque ele não foi preso. Não sei se caberia flagrante ou não por não ser advogada, mas está escrito na reportagem que a declaração do rapaz foi dada “no local” e se isto significa em frente à casa da vítima, penso que seria flagrante, sim, os advogados que me corrijam.
Em segundo lugar, é sabido que a justiça é morosa e falha e que bons advogados custam muito caro e, assim, a sociedade, em seu sistema judicial, protege quem é financeiramente privilegiado.
Em terceiro lugar, pelo racismo vigente em nosso país, um rico branco e um rico negro são julgados pela sociedade de modos diferentes. Há artigos e depoimentos que corroboram isto e eu dei uma pequena contribuição de minha própria vivência em artigo neste mesmo blog.
Eliane
18 de abril de 2015
Não adianta querer fugir dos fatos, eles estão aí como uma fratura exposta. O estudante o agrediu e ponto, basta olhar o estado que ele ficou. Porque não foi feito exame de delito no rapaz já que ele disse que foi agredido. Inimaginável pensar no oposto. Quanto as ameaças, as pessoas estão cansadas de injustiça e ficam revoltadas quando vêem tanta barbárie. O fato foi parar na mídia e a TV não poupou esforços para colocar a tona a situação absurda. Que agride perde a razão, principalmente porque não foi de igual pra igual, não se compara um idoso de 81 anos a um garoto de 19 anos. Se ele cursa a universidade ou não é problema dele, isso não faz com ele tenha sua culpa diminuída, muito pelo contrário, aí sim é que ele deveria ter uma reputação ilibada. Desculpe mas nada justifica isso…
Genário Silva
2 de setembro de 2020
“como você vai amortizar esta dívida, se com humildade ou arrogância, é que vai definir realmente quem você é: uma pessoa honrada ou um canalha…”
Parece-me que a resposta já foi dada.