Em um texto de apresentação de seu penúltimo concerto, realizado no Mosteiro de S. Bento, no ultimo dia 17 de setembro, Júlio Amstalden se baseia nas ideias de G. Simmel e W. Benjamin, intitulado “As grandes cidades e a vida do espírito”. Os autores ressaltam a atitude “blasé” dos habitantes das grandes cidades. Para eles, uma reação aos múltiplos estímulos a que as pessoas estão sujeitas nos grandes centros urbanos.
O trabalho de Simmel e Benjamin foi escrito em 1903. De lá para cá, esta atitude, que podemos traduzir por “indiferente” se acirrou espantosamente. De fato, não só as cidades cresceram, e muito, mas o mundo se globalizou. Se haviam muitos estímulos em 1903, agora, inclusive com a tecnologia, computadores, smartphones e a avalanche de informações, a maioria voltada ao hiper-consumismo, nos torna ainda mais indiferentes ao que realmente nos cerca, enviando-nos a um universo irreal, fantasioso. Algo que tem sido explorado por vários autores modernos, dentre os quais D. Harvey, Z. Bauman e outros.
Mas, é possível se viver bem em um mundo de indiferença e de mergulho em universo irreal? E mais ainda, diante de imensos desafios que o século XXI nos traz, a atitude de indiferença é prudente? Não estaríamos nos negando a ver, perceber as realidades da crise ambiental, da crise política, da insustentabilidade de nossa situação? Penso que, não só em termos pessoais é impossível se viver bem, se ter algo do que chamamos “felicidade” em um universo “virtual” como também estamos nos apegando a imagens externas às nossas necessidades, inclusive políticas e sociais. Você duvida disso? Pense bem: vivemos em um mundo em que o presidente da maior nação do mundo nega o aquecimento global, se propõe a construir uma “nova muralha da China” e as pessoas acreditam nesses delírios. Acreditam também, aqui, que o governo “retomou” as rédeas do país, que a economia está crescendo e que, nesse governo, a corrupção está controlada. Isso tudo é algo que podemos chamar de realidade?
Penso que precisamos “acordar”, refletir e sentir. Sim, sentir, porque não somos seres unicamente pensantes. Aliás, não me parece existir pensamento sem sentimento. Ambas as coisas são inseparáveis. Sentimos e pensamos, logo existimos.
A arte é um dos caminhos para esse “despertar”. Para essa quebra da indiferença, da atitude “blasé”, “cool”, como chama Harvey, que nos aliena de nós, de nossa sociedade, nossas cidades e nossas realidades. A arte pode nos arrancar da apatia, levando-nos primeiro à interiorização, depois, à interação com as outras pessoas e o mundo real.
E para isso, para viver essa experiência através da arte, teremos uma oportunidade no próximo dia 26 de novembro, domingo. Um concerto cujo programa foi baseado na necessidade do sentir/pensar, do romper com a indiferença.
Júlio Amstalden, músico, organista e doutor em educação, escolheu um repertório que trilha esse “sentir/refletir”. Parte de C. Frank, com uma peça “blasé”, melancólica, adequada ao cenário descrito por Benjamin e Simmel. Segue com a obra de F. Mendelssohn e Amaral Viera, que nos “relatam” as transformações rápidas e incessantes das impressões interiores e exteriores a que estamos sujeitos e nos colocam na posição de indiferença defensiva.
Mas, as cidades e o mundo moderno, não são monolíticos. Eles são, também, repletos de espaços e eventos, tradições preservadas ou novos momentos de reflexão, ensino, aprendizado e redescoberta de uma vida espiritual, que nos devolve à percepção de nós mesmos e do mundo.
Foi em um destes espaços, uma sinagoga em Berlim, mantida pela comunidade de judeus do Azerbaijão que vivem na Alemanha, que Jean Goldenbaum, doutor em música, brasileiro radicado em Hannover, se inspirou para compor a outra obra a ser executada no concerto: “Preces infinitas”.
Jean nos conta que, ao visitar a sinagoga com sua esposa, ficou impressionado com a liturgia e os cânticos que, embora dentro dos cânones judaicos, tinham o traço da cultura do país de origem daqueles fiéis. Conta ainda que, ao sair da cerimônia, foi como se as preces, sempre cantadas, como em todos os ramos do judaísmo, pareciam acompanhá-lo, como que “infinitas”. Neste ponto do concerto há a inflexão. Do “indiferente” ao “perceptivo”. Do defensivo aos múltiplos estímulos, à abertura para um novo (e antigo) momento, uma nova experiência que nos devolve à espiritualidade e à interiorização. Nos devolve àquilo que talvez seja a mais elevada busca humana: a transcendência, seja esta pela arte ou pela religião, ou ainda, por ambas. Em um a metrópole, portanto, diante de um aspecto da globalização, Goldenbaum encontra a espiritualidade e o sentimento, opostos da apatia.
E, como um bônus e quase que como uma consequência do trajeto do concerto em busca do sentir e pensar, uma última obra de Goldenbaum: “Fantasia Brasileira”. Aqui uma crítica, característica do homem consciente: “Fantasia Brasileira” fala de dois aspectos do Brasil. Por um lado a fantasia da ignorância de sua própria situação em que vivem os brasileiros, ignorando (ou sendo indiferentes?) à violência do país, seus problemas e sua pobreza, acreditando que a vida assim é “normal”. Por outro lado, a peça fala da fantasia do estrangeiro, que vê no Brasil apenas uma sucessão de festas e mulheres seminuas. Uma peça crítica, repito, de uma crítica que só tem aquele que se afasta da apatia.
Esse concerto será o encontro rico que as grandes cidades e a vida moderna podem nos proporcionar, para além do universo virtual e cacofônico dos estímulos que tentam nos dirigir para interesses que não são os nossos. Um encontro de compositores antigos e modernos, com uma narrativa que dialoga através dos sentimentos e pensamentos, de um organista católico e um compositor judeu. O encontro, rico e fecundo, que celebra a união na diversidade e na cidade diversa, juntando o lúdico e o reflexivo.
Venha participar deste encontro tão raro. Jean Goldenbaum estará presente e ouvirá, pela primeira vez ao vivo, sua obra executada por Júlio Amstalden, a quem dedicou “Preces Infinitas”.
Dia: 26 de Novembro de 2017
Horário : 16:45
Local: Basílica Nossa Senhora do Carmo
Praça Bento Qurino s/n Centro Campinas – SP
Enrada gratuita com contribuição espontânea ao final
Júlio Amstalden iniciou seus estudos musicais na então Escola de Música de Piracicaba, instituição onde foi aluno de Elisa Freixo (órgão) e Ernst Mahle (harmonia e contraponto). Obteve o título de Mestre em Artes pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de São Paulo, onde foi orientado pela organista Dorotéa Kerr. Na Universidade de Alberta, Canadá, foi aluno da organista Marnie Giesbrecht. Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), tendo sido orientado pela profa. Dra. Olga Von Simson. Também na UNICAMP, foi aluno de cravo de Edmundo Hora.
Foi organista na Igreja Sagrado Coração de Jesus de Piracicaba, bem como organista e regente coral na Universidade Metodista de Piracicaba. Apresentou-se em várias cidades do Brasil, na Argentina e no México.
Atualmente é docente no Curso de Licenciatura em Música da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP) e organista e regente de coro na Basílica Nossa Senhora do Carmo de Campinas.
Dr. Jean Goldenbaum (São Paulo, *1982) é compositor, musicólogo, educador e ativista social. Trabalha como pesquisador no ‘Centro Europeu de Música Judaica’ da ‘Universidade de Hannover’, Alemanha. Sua música já foi apresentada em diversos países do mundo: Alemanha, Argentina, Austrália, Áustria, Brasil, Canadá, Dinamarca, Estados Unidos, Finlândia, Inglaterra, Itália, Paraguai e Suécia. Possui quatro álbuns gravados, assim como obras publicadas. Já foi compositor residente em diversos eventos europeus. Vem proferindo palestras a respeito de sua obra e de suas pesquisas musicológicas em diferentes partes do mundo. Ele também realiza trabalhos voluntários como professor e palestrante e apoia diversas causas relativas à tolerância religiosa, à liberdade e ao bem-estar humano e animal. Recentemente teve publicado seu primeiro livro, ‘Concepções e reflexões sobre e ao redor de minha obra musical’. Jean vive em Hannover com sua esposa Paola e seu cão Jake.
Posted on 22 de novembro de 2017 por blogdoamstalden
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