Nicolau. Por Luis Fernando Amstalden

Posted on 23 de fevereiro de 2018 por

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Em maio faria vinte e um  anos que você foi resgatado. Devia ter uns dois meses o que significa que em breve você completaria vinte e um  anos de vida..

Na época você estava tão faminto que não tinha forças para miar. Minha mãe o trouxe da chácara onde o encontrou e onde você a seguia com dificuldade, mal vencendo o mato. Eu o levei imediatamente ao veterinário que aplicou um remédio contra pulgas e parasitas. Elas literalmente fizeram barulho na mesa de metal ao cair, tantas eram. Comprei comida, a melhor que pude e você comeu muito, depois dormiu por quase dezesseis horas. Temi que não estivesse bem, mas quando acordou, brincou e pulou em uma velocidade impressionante. Você não tinha nada, só fraqueza e quando ela passou, veio a alegria de viver.

Já era um filhote lindo, preto e branco e pelos longos. Era muito amado, mas teria sido de qualquer forma, mesmo que não fosse tão bonito,  tal a sua docilidade, seu carinho. As pessoas da rua paravam para lhe acariciar e seu ronronado alto era um bálsamo para mim e para muitos.

Paciente com as crianças, nunca as arranhou. Fugia de algumas, e verdade, mas não as feria. Ainda digo ao Dante, meu sobrinho, agora com dezesseis anos, que, fugindo dele, você, Nico, o ensinou a “engatinhar”, numa brincadeira com as palavras.

Mas você não foi só bom para com as crianças de casa e sim com todas as pessoas que nos visitavam.  Quando uma amiga de minha irmã veio com o filho pequeno, ouvimos as gargalhadas da criança em outra sala e encontramos você, sentado, lambendo a cabecinha do menino agachado à sua frente, espalhando os cabelinhos dele que ria deliciado.

Você era afetuoso com outros animais também. Quantas vezes o surpreendemos ao lado de gatos de rua que entravam para comer sua comida e você ficava ali do lado deles, como se os houvesse convidado e servido. Mesmo agora estava fazendo com dois que frequentam a casa de meus pais para comer. Minha mãe diz que o viu, várias vezes, do lado de dentro do portão e o seu “convidado” do lado de fora. Sentados, parecendo conversar. Talvez estivessem mesmo. Os cientistas já comprovaram que os animais têm consciência sim, e quem convive com eles também sabe.

Senti muito quando me mudei e tive que deixá-lo com meus pais. Mas eu não podia privá-lo de uma casa grande, um quintal grande e o terreno ao lado onde você passeava até bem pouco tempo. Tenho três outros gatos agora e o que mais sinto é que, eles, não tenham o espaço que você tinha. Eu não podia privá-lo então e nem meus pais de sua companhia. E você aproveitou bem o espaço, passeou muito. Nunca sofreu um atropelamento, um ataque de cães, animais ou outras pessoas. Ao contrário, acabava tendo o afeto de muitos vizinhos e desconhecidos, como do operário que toda tarde parava para lhe fazer um carinho pela grade do portão e chegou a tocar a campainha para perguntar de você em alguns dias que não o viu.

Você teve tudo o que pudemos lhe dar. Carinho, amor, cuidados, alimentos, liberdade Não sei se foi feliz, à maneira dos gatos ou como se consciente, mas espero que tenha sido.

Mas o tempo é um “deus” cruel e esse corpo com o qual vivemos é frágil e se desgasta. Você estava muito fraquinho, sem dentes, magro como nunca foi. O veterinário dizia que era a idade, esse tempo de validade de nosso corpo tão fantástico e tão perecível.

E hoje, dia 23 de fevereiro de 2018, você se foi… Meu pai de oitenta e quatro anos e minha mãe de oitenta, choram desconsolados. Eu, criado nessa maldita cultura machista de “homem não chora”, tenho os olhos secos, mas “verto estas lágrimas de tinta”.

Mas, para onde você “foi”?

Eu não sei. Mesmo os que creem em um Deus e um paraíso, dizem que estes não são para você, não são para os animais. Os que em nada creem confirmam ressaltando a “frieza cósmica do Universo”

Mas eu trago entranhada em minha alma, uma estranha “teologia”

Eu, que já escrevi sobre isso várias vezes, penso que a vida é um milagre tão grande que não pode simplesmente se extinguir. Penso e creio que, se Deus existe, existe para todas as formas de vida e as acolherá com alegria, porque todas as formas de vida, aqui, sofrem.

E nessa estranha crença, desejo que um dia eu possa reencontrar todos os seres que amei, humanos ou não. É esse desejo/esperança que me alivia a dor agora, assim como a dor que senti por todos os que partiram.

Até logo Nicolau.

Um dia eu o reencontrarei, assim como tantos outros.

Luis Fernando Amstalden

Dedicado à Lita, Negão, Beth, Jô, Catita, Gegali, Tui, Chin, Lelê, as duas Zizis, Diana, Paçoca, Priscila e, claro, ao Nicolau. Todos os cães e gatos com os quais dividi essa existência e que, um dia, reencontrarei, assim como tantas pessoas.

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